Mulheres, de alma e hábitos negros

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Esta história, ouvi dizer. Por tanto e obviamente, me foi contada, e sabemos, que como no telefone sem fio, se fia pouco o que nos chega aos ouvidos. Por esta razão é curto, para não perder o fidedigno e que se acaso necessite remendo da imaginação, que seja mínimo.

Eram muitas as mulheres, que habitavam o lugar. Aliás, apenas mulheres, de idade que iam de duas a oito décadas. O lugar mesmo belo e amplo no que diz respeito à extensão territorial, ainda assim era isolado e cercado por grades, asseguradas por além da boa-fé, também pelos desígnios divinos dos céus.

As mulheres que ali viviam, certamente eram de hábitos simples e estavam sempre a andarem em pares. Havia nelas uma jocosidade quase misteriosa, por que não dizer, sagrada – ao menos para quem fora daquelas grades vivia.

Há tiracolo, sempre traziam consigo uma pequena garrafa amarrada a um cordão que lhes ia do pescoço a cintura, do qual de tempos-em-tempos – bastante curto – bebericavam um trago de bebida, mesmo que para olhos alheios, desconhecida, parecia ser bastante saudável, e que nunca parecia ter fim.

Quem as visse, logo tirava conclusões precipitadas, pareciam mulheres castelãs, privadas de sua liberdade, protegidas ou isoladas das tentações e maldades para fora daqueles muros, que nem muros e nem tão altos eram.

Diriam os mais velhos, sobre elas, crianças, ainda ávidas para as coisas do mundo, mas a verdade é que ali eram preparadas para encarar, ajudar e/ou estarem protegidas mentalmente e fisicamente neste "mundo", cão.

Dentro daquele forte, tinham toda a liberdade para transitar, claro que, em seus raros momentos de lazer. Um par delas, adquiriu o hábito de se permitir ir aos limites sul do forte, para admirar uma bela árvore – à qual direi uma macieira – cabendo-lhe bem a metáfora. Ali, podiam vislumbrar para além das grades o mundo externo, sempre protegidas.

Certo dia, perceberam um fruto raro a sombra da macieira, um mancebo peregrino, que todos os dias ali se prostrava, cabisbaixa, sem nada fazer ou dizer, saindo assim que soava a última badalada do sino, que era tocado, convocando a raparigas aos compromissos, de hora em hora. Assim, não viam elas, a sua chegada e nem a sua partida, levando a crer ser uma aparição. E quando tiveram a chance de lá retornar, já não encontravam o peregrino.

Seguiram-se os dias, e até semanas, aquela rotina, e junto a curiosidade, natural nestas condições impostas pela clausura e idade– Especularam elas, qual seria as motivações que o trazia todos os dias a macieira, se não precisava de seu auxílio, até se não o era imaginação.

Aquele homem, ali, dia-após-dia, ensimesmado em seu próprio mundo, indiferente ao seu redor, e o que para elas era o pior, o fato de as ignorar totalmente a existência.

As palavras, cada dia mais eram enclausuradas, a voz dava lugar ao silêncio, o mesmo, dava asas aos pensamentos, e os pensamentos, estes eram, inaudíveis.

Elas, não mais precisavam usar as palavras para dizer ou saber, o que uma e outra sentia, era puro e simples desejo. A luxúria lhes soprava aos ouvidos, a tentação era algo diariamente cultivado.

As desculpas, de toda sorte, até a falta de fome e sede de essência, lhes haviam tomado posse.

Aquelas mulheres, apenas um pensamento lhes tomava conta. O ensejo para ter com o peregrino, o fim de sua castidade.

Assim, ainda se deu, não saberia dizer se por mês ou anos, mas foi.

Até que certo dia, para a surpresa e assombro das mulheres, não tornaram a ver o peregrino, sentado à sombra da macieira, da mesma forma que surgiu, um dia deixou de ser.

Mas agora era tarde demais para aquelas duas mulheres, o peregrino havia – sem saber – deixado suas impressões nas almas daquelas pseudo - noviças, lhes roubando o desejo de freira se tornar.

Um dia, elas, por não suportarem, sem mais poder abafar o que os corpos lhes gritavam, para o que a natureza tão naturalmente as chamara, no alto da torre, onde diariamente dobravam os sinos, as duas mulheres, de almas e hábitos negros, se amaram.

Três coisas, posso afirmar sobre esta história. Um. Esta foi escrita, lá pelos idos anos de 2001, momento em que, madrugada afinco, me deleitava na leitura dos clássicos. Dois. Simultaneamente, descobri as crônicas do grande Nelson Rodrigues.

Três. Quanto a veracidade dos fatos narrados, os pude comprovar anos depois, mais precisamente entre os anos de 2020 e 2021; quando passei um ano em um retiro, o qual tínhamos a sorte de estarmos, a certa medida, sobre os cuidados de noviças e freiras que viviam em clausura, que nem por isso deixaram de causar, e sentir os desejos, e desmandos do coração humano e sua natureza.

Palavras Para Distrair a InsôniaOnde histórias criam vida. Descubra agora