15 . Duas cabecinhas de anjo

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Era de fato uma longa estrada, mas d'Artagnan não se preocupava: sabia que os cavalos tinham se refeito nas fartas manjedouras do sr. de Bracieux. Partiu então cheio de confiança para as quatro ou cinco jornadas que deveria cumprir, seguido pelo fiel Planchet.

Como já dissemos, para combater o fastio da estrada os dois viajantes seguiam lado a lado e conversavam à vontade. D'Artagnan pouco a pouco se desfizera da posição de amo e Planchet havia abandonado completamente a roupagem de criado. Era um indivíduo solerte, e, desde que se improvisara burguês, frequentemente sentia falta das francas refeições à beira da estrada, assim como da conversa e brilhante companhia de fidalgos. Percebendo, além disso, ter algum valor pessoal, lamentava se depreciar no eterno contato com pessoas de ideias rasteiras.

Ele então logo chegou ao status de confidente, e daquele a quem ainda considerava seu amo. Há muitos anos d'Artagnan não abria o coração e o encontro levou-os, espantosamente, a se relacionarem.

Aliás, Planchet não era um companheiro de aventuras qualquer. Era alguém de bom conselho que, sem procurar o perigo, não recuava caso algo assim ocorresse, como d'Artagnan muitas vezes pudera comprovar. Acrescente-se que tinha sido soldado e as armas enobrecem o homem. Acima de tudo, Planchet podia até estar momentaneamente precisando de d'Artagnan, mas, sem sombra de dúvida, era alguém útil. Foi então quase que em pé de boa amizade que os dois chegaram à região de Blois.

Durante todo o caminho, d'Artagnan sacudia a cabeça e repetia a ideia que incessantemente o obcecava:

— Sei que minha tentativa com Athos é inútil e absurda, mas devo fazê-la em respeito ao antigo amigo, alguém que tinha em si a essência do mais nobre e generoso ser humano.

— Ah! O sr. Athos era um grande fidalgo! — concordava Planchet.

— Não é mesmo?

— Semeava o dinheiro como o céu espalha o granizo — continuou Planchet, levando a mão à espada com ares de rei.

— Lembra-se, tenente, do duelo com os ingleses no terreno das Carmelitas? 173 Puxa! Ele esteve grandioso e magnífico naquele dia, dizendo ao adversário: "Exigiu que eu dissesse meu nome, cavalheiro, pior para o senhor, pois serei obrigado a matá-lo!" Eu estava perto e ouvi. São as suas exatas palavras. E a maneira como ele olhou para o adversário, tenente, quando o atingiu, como havia previsto. O inglês caiu no chão sem um suspiro. Ai, tenente! Volto a dizer, era um grande fidalgo.

— Está absolutamente certo — observou d'Artagnan. — Exato como um Evangelho, mas ele deve ter perdido essas qualidades por causa de certo defeito.

— Eu sei — concordou Planchet —, ele gostava de beber, quer dizer, bebia. Mas não bebia como todo mundo. Os olhos nada expressavam quando ele levava a bebida à boca. Na verdade, nunca um silêncio foi mais falante. A observá-lo do meu canto, eu tinha a impressão de ouvir o murmúrio:

"Cumpra o seu papel, álcool! E mande embora a tristeza." E como ele sabia quebrar o pé de uma taça ou o gargalo de uma garrafa! Era o melhor nisso.

— Pois imagine o triste espetáculo que nos espera. Aquele nobre fidalgo de brioso olhar, o grandioso cavaleiro, tão brilhante em sua couraça que sempre nos espantávamos que tivesse na mão uma simples espada e não um cetro de comando, pois bem!, deve ter se transformado num velhote alquebrado de nariz vermelho e olhos lacrimejantes. Vamos encontrá-lo caído em algum gramado, de onde vai nos olhar com olhos turvos e talvez nem nos reconheça. Só Deus sabe o quanto eu gostaria de evitar esse triste espetáculo, Planchet, se não fosse tão necessário afirmar meu respeito por essa sombra ilustre do glorioso conde de La Fère, de quem tanto gostamos.

Vinte Anos Depois  (Alexandre Dumas) - Edição Comentada e IlustradaOnde histórias criam vida. Descubra agora