79. De como Mousqueton, depois de quase ser assado, quase foi comido

2 0 0
                                    

Um profundo silêncio reinou por bom tempo sobre o barco, depois da cena terrível que acabamos de contar. A lua, que se mostrara por um instante, como se Deus quisesse que detalhe nenhum do ocorrido se ocultasse dos espectadores, novamente desapareceu por trás das nuvens. Tudo voltou àquela assustadora escuridão dos desertos e, mais ainda, desse deserto líquido chamado Oceano. Apenas o assobio do vento oeste era ouvido acima das ondas.

Porthos foi o primeiro a romper o silêncio.

— Já vi muita coisa, mas nada me perturbou tanto quanto o que acabo de assistir. No entanto, por mais abalado que esteja, quero dizer que me sinto muito feliz. Cem libras a menos me pesam no peito e posso, enfim, respirar livremente.

E Porthos aspirou o ar com um barulho digno da potente capacidade dos seus pulmões.

— Não posso dizer o mesmo, Porthos, pois me sinto ainda apavorado — disse Aramis. — A tal ponto que não consigo acreditar no que vi e procuro ainda em volta do barco, na expectativa de a qualquer momento ver ressurgir aquele miserável, brandindo o punhal que tinha plantado no coração.

— Pois quanto a isso me sinto tranquilo — voltou Porthos.

— O golpe foi na altura da sexta vértebra e penetrou até o cabo. De forma alguma estou criticando Athos, pelo contrário.

Quando a gente fere, é assim que se deve ferir. Então, repito, me sinto viver, respiro e sou feliz.

— É cedo ainda para cantar vitória, Porthos — observou d'Artagnan. — Nunca corremos um perigo tão grande quanto este, pois um homem pode dobrar outro homem, mas não os elementos. Lembre-se que estamos no mar, à noite, sem direção e num bote bem frágil. Uma pancada de vento que faça virar o barco e estamos perdidos.

Mousqueton suspirou fundo.

— Está sendo ingrato, d'Artagnan — observou Athos. — Isso mesmo, ingrato, ao pôr em dúvida a Providência, no momento mesmo em que acabamos de nos salvar de maneira tão miraculosa. Acha que ela nos livrou de tantos perigos, guiando-nos o tempo todo, para depois nos abandonar? De forma alguma. Partimos com um vento de oeste, que continua a soprar. Ali está a Ursa Maior — disse ele, orientando-se pela estrela polar —, consequentemente, é onde está a França. Deixemos o vento nos levar e, enquanto ele não mudar, estaremos indo para as costas de Calais ou de Boulogne. Se o barco virar, somos fortes o suficiente, e bons nadadores, pelo menos cinco de nós, para revirá-lo ou nos amarrarmos nele, se a tarefa estiver acima das nossas forças. Estamos na rota de todos os navios que vão de Dover a Calais e de Portsmouth a Boulogne. Se a água deixasse marcas, os sulcos traçados já teriam aberto um vale exatamente onde nos encontramos. É impossível, então, que quando amanhecer não encontremos algum barco de pescador que nos recolha.

— Mas digamos que não encontremos e que o vento vire para o norte!

— Nesse caso — reconheceu Athos —, as coisas mudam, e só veríamos terra do outro lado do Atlântico.

— O que quer dizer que morreríamos de fome — atalhou Aramis.

— Provavelmente.

Vinte Anos Depois  (Alexandre Dumas) - Edição Comentada e IlustradaOnde histórias criam vida. Descubra agora