88. O espírito e o braço

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Passemos agora da estufa ao pavilhão de caça.

No fundo do pátio, no qual se entrava atravessando um pórtico sustentado por colunas jônicas, viam-se os canis e uma construção oblonga que parecia se estender como um braço à frente daquele outro braço que era o pavilhão da estufa, formando um semicírculo ao redor do pátio principal. 515

No andar térreo desse pavilhão estavam presos Porthos e d'Artagnan, compartilhando as longas horas de encarceramento que aqueles dois temperamentos tanto detestavam.

D'Artagnan andava como um tigre, olhar fixo, e, às vezes, rugia surdamente junto às barras de uma janela grande que dava para o pátio de serviço.

Porthos fazia, em silêncio, a digestão de uma excelente refeição, da qual acabavam de levar embora os restos.

Um parecia ter perdido a razão e, no entanto, pensava. O outro parecia pensar profundamente e, no entanto, dormia. Mas seu sono abrigava algum pesadelo, que se podia adivinhar pela maneira incoerente e entrecortada com que roncava.

— Pronto! — disse d'Artagnan —, a tarde já acaba. Devem ser umas quatro horas, no mínimo. Há quase cento e oitenta e três horas estamos aqui.

— Hum... — resmungou Porthos para fingir algum interesse.

— Ouviu isso, seu eterno dorminhoco? — impacientou-se d'Artagnan, vendo que o outro dormia de dia, enquanto ele, mesmo à noite, tinha toda dificuldade do mundo em fechar os olhos.

— O quê?

— O que eu disse.

— O que disse?

— Disse que há quase cento e oitenta e três horas estamos aqui.

— Por culpa sua.

— Como assim, por culpa minha?

— Isso mesmo, propus que fôssemos embora.

— Arrancando uma barra da grade ou derrubando uma porta?

— Exato.

— Porthos, gente como nós não vai embora assim, pura e simplesmente.

— Pois eu iria, com essa pureza e simplicidade de que você parece desdenhar um pouco demais.

D'Artagnan deu de ombros.

— Além do mais, não basta apenas sair desse quarto.

— Caro amigo, você parece hoje estar de melhor humor que ontem. Explique por que não basta apenas sair desse quarto.

— Não basta porque não temos armas nem sabemos as senhas. Não daremos cinquenta passos no pátio sem topar com uma sentinela.

Vinte Anos Depois  (Alexandre Dumas) - Edição Comentada e IlustradaOnde histórias criam vida. Descubra agora