23. O abade Scarron 234

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Havia, na rua des Tournelles, uma casa que todos os carregadores de padiolas e lacaios de Paris conheciam. No entanto, não morava ali nenhum grande senhor ou importante financista. Ali não havia jantares, nunca se jogava e menos ainda se dançava.

No entanto, era um ponto de encontro da bela sociedade, que toda Paris frequentava.

Essa casa era a do pequeno Scarron.

Ria-se tanto no salão daquele espirituoso padre, eram tantas as notícias que por lá circulavam, logo comentadas, esmiuçadas e transformadas, às vezes em contos, às vezes em epigramas, que todo mundo gostava de ir passar uma hora com o pequeno Scarron, ouvir o que ele dizia e passar adiante. Muitos também ardiam de desejo de poder fazer alguma observação e, sendo ela engraçada, essa pessoa se tornava imediatamente bem-vinda.

O pequeno abade Scarron, diga-se, só era abade por possuir uma abadia, e não por pertencer a uma ordem religiosa. Em outras épocas, fora considerado o mais animado prebendeiro da cidade de Mans, onde morava. Num dia de carnaval, motivado pela convicção de ser ele a alma daquela boa cidade e querendo então simplesmente espalhar alegria, fez seu valete besuntá-lo de mel e depois, cortando um colchão de plumas, mergulhou dentro, de forma que se transformou na mais grotesca ave que se possa imaginar. Partiu então em visita aos amigos e amigas nesse estranho paramento. De início, por onde passava o olhavam com exclamações de surpresa e depois com vaias. Mais adiante, desocupados começaram a gritar insultos e crianças jogaram pedras. Conclusão: ele acabou sendo obrigado a fugir para escapar dos ataques. Mas a partir do momento em que fugiu, começaram a persegui-lo. Pressionado, escorraçado, atacado por todos os lados, Scarron viu uma única saída para escapar daquele cortejo: se jogar no rio. Era capaz de nadar como um peixe, mas a água estava gelada. Scarron suava em bicas e o frio causou um choque; ao chegar à outra margem, estava paralisado. 235

Tentou-se então, por todos os meios conhecidos, devolver-lhe o controle dos membros, mas isso com tais sofrimentos que ele acabou mandando às favas todos os médicos, dizendo até preferir a doença. Foi depois disso que se mudou para Paris, onde já tinha fama de homem espirituoso. Na capital, ele encomendou a fabricação de uma cadeira que inventara e, certo dia, foi com ela visitar a rainha Ana da Áustria, a qual, encantada com o seu humor, perguntou se desejava algum título.

— Desejo sim, Vossa Majestade. Há um título que eu muito apreciaria — respondeu Scarron.

— Qual?

— O de vosso doente.

E assim, Scarron foi nomeado doente da rainha, com uma pensão de mil e quinhentas libras. 236

A partir daí, sem ter mais por que se preocupar com o futuro, Scarron levou alegre vida, devorando seus fundos e rendas.

A certo momento, porém, um emissário do cardeal o informou do erro que cometia ao receber em casa o sr. coadjutor.

— Como assim? — estranhou Scarron. — Não se trata de alguém de nobre estirpe?

— Sim, claro!

— Amável?

— Incontestavelmente.

— Espirituoso?

— Infelizmente, até demais.

— E então? Por que deixar de frequentar pessoa assim?

— Porque ele pensa errado.

— Mesmo? A respeito de quê?

— Do cardeal.

— E o que tem isso? — continuou Scarron. — Continuo a ver o sr. Gilles Despréaux, 237 que fala mal de mim, por que não ver o sr. coadjutor, que fala mal de outra pessoa? Não faz sentido!

Vinte Anos Depois  (Alexandre Dumas) - Edição Comentada e IlustradaOnde histórias criam vida. Descubra agora