90. O braço e o espírito

2 0 0
                                    

A ceia foi silenciosa, mas não triste, pois de vez em quando um daqueles finos sorrisos, habituais em seus momentos de bom humor, iluminava o rosto de d'Artagnan. Porthos não perdia um desses sorrisos e, a cada vez, por meio de alguma exclamação, procurava indicar que, mesmo sem entender exatamente, ele não deixava de acompanhar a efervescência cerebral do amigo.

No momento da sobremesa, d'Artagnan tomou uma postura mais relaxada na cadeira, cruzou as pernas e se balançou como alguém perfeitamente satisfeito de si.

Porthos apoiou o queixo nas duas mãos e os cotovelos na mesa, olhando para o amigo daquela maneira confiante que lhe dava, colossal como ele era, uma expressão de tão surpreendente bonomia.

— E então? — perguntou d'Artagnan após um instante.

— E então? — repetiu Porthos.

— O que dizia o amigo?

— Eu? Não disse nada...

— Sim, teve uma hora que disse querer ir embora daqui.

— Ah, isso, sem dúvida! Não falta vontade.

— E acrescentou que, para ir embora, bastava arrombar uma porta ou uma parede.

— É verdade, dizia e digo de novo.

— E eu respondi não ser um bom momento para isso, pois não daríamos cem passos sem sermos pegos e derrubados, a menos que tenhamos roupas para nos disfarçar e armas para nos defender.

— É verdade, faltam-nos roupas e armas.

— Pois veja só, amigo Porthos, nós temos isso — disse d'Artagnan levantando-se. — E até coisa melhor.

— Onde? — Porthos olhou em volta.

Ops! Esta imagem não segue nossas diretrizes de conteúdo. Para continuar a publicação, tente removê-la ou carregar outra.

— Formidável! Você é realmente talentoso, Porthos.


— Não perca tempo procurando, tudo virá a nós no momento certo. A que horas, mais ou menos, vimos ontem os guardas suíços?

— Acho que uma hora depois que caiu a noite.

— Se eles hoje saírem à mesma hora, temos somente quinze minutos para o prazer de voltar a vê-los.

— No máximo.

— Continua tendo bons braços, não é?

Porthos desabotoou e arregaçou a manga da camisa, olhando satisfeito o braço com as veias saltadas, da grossura da coxa de um homem comum.

— É, continuam bons.

— Sente-se capaz de, sem muita dificuldade, fazer um arco desse pegador de brasas e um saca-rolhas dessa pazinha?

— Fácil.

— Vejamos, então.

O gigante pegou os dois objetos da lareira e, sem aparentar nenhum esforço, operou as duas metamorfoses sugeridas.

— Pronto.

— Formidável! Você é realmente talentoso, Porthos.

— Ouvi falar de um tal Mílon de Crotona, 518 que fazia coisas extraordinárias, como amarrar uma corda ao redor da cabeça e fazê- la estourar com a pressão das veias, matar um boi com um soco e levá-lo para casa nas costas, parar um cavalo pelas patas de trás etc. etc. Soube dessas proezas lá em Pierrefonds e fiz tudo que ele fez. Só não consegui arrebentar a corda.

— É porque a sua força não está na cabeça, Porthos.

— Não. Está nos braços e nos ombros — ele respondeu ingenuamente.

— Pois bem, amigo. Vamos até a janela e use essa sua força para deslocar uma barra. Espere que eu apague o lampião.





518. Célebre atleta grego, morto em 510 a.C., doze vezes vencedor das competições de luta nos jogos antigos.

Vinte Anos Depois  (Alexandre Dumas) - Edição Comentada e IlustradaOnde histórias criam vida. Descubra agora