Sei que vocês que estão me vendo andando sem rumo algum por essa calçada enquanto os carros passam zunindo alto ao meu lado estão sem entender nada. Parece mais que estão acompanhando o começo da jornada em um livro de tragicomédia com enfoque na história de uma personagem, mas, se o personagem principal for ser eu, já aviso de antemão que não esperem grande coisa. Sou mais disfuncional do que um forno mal regulado.
Inclusive, acho que não me apresentei devidamente, desculpe. Meu nome é Morgana, mas só me chamam assim quando querem falar sério comigo ou estão com raiva. Na maior parte do tempo só me chamam de Mog. Também tenho uma irmã, mais velha, a Isolda. A propósito, ela odeia esse nome, apesar de achar um nome poderoso. Quantas Isoldas se conhecem por aí além daquela da história?
Ainda falando de família, a minha está longe de ser uma daquelas da propaganda de margarina, mas já devem ter percebido que há alguma coisa errada por aqui mesmo. Minha irmã está internada compulsoriamente em uma clínica de reabilitação há pelo menos cinco anos, entre idas e vindas. Não vou esconder bem a realidade entre nós, mas ela é alcóolatra, daquelas que passam em vídeo de conscientização na escola como exemplo para não ser seguido.
"Mas e você, Mog?"
Fui para um local um pouquinho diferente dela. Para alguns conhecido como clínica de repouso mental, mas para os mais íntimos como hospício, manicômio, sanatório.
Pois é. Passei os últimos setes anos nessa adorável colônia de férias.
"Nossa, e o que te levou a ficar tanto tempo ali?"
Espero que me desculpem desde já, mas não é o tipo de coisa que quero falar ou lembrar. Apesar de já estar melhor estabelecida com isso eu prefiro, como diz minhas inúmeras psicólogas, recalcar isso, ou o famoso "deixa pra lá". Tem coisas que são melhores esquecidas. Já lido com os reflexos delas suficiente pra ter que ficar revivendo isso constantemente.
"Então, você foi diagnosticada com alguma coisa?"
Vou deixar isso aí para descobrirem depois. Agora, preciso me decidir se ligo ou não pra Isolda. Além do mais, eu não sei o que fazer, sério. Ter liberdade assim de uma hora pra outra é esquisito, porque tem tantas coisas que você pode fazer que se perde. Eu tenho dinheiro o suficiente pra ir pra qualquer lugar, eu acho. Não ando sabendo muito bem como está a inflação das coisas, mas acho que é o suficiente.
Paro em uma padaria e olho para o número da clínica. Respiro fundo e ligo para lá. Faz pouco mais de quatro meses que nos falamos, por aí.
— Alô? Oi, é a Morgana, irmã da... Sim, dela mesmo. Ela está aí?
Depois da atualizada nos últimos acontecimentos do lado de lá, ouço atentamente e concordo coma cabeça, tal qual como um dos cachorros que ficava do lado do motorista do carro da mamãe.
— Então você pode dar um recado pra ela? Fala que eu saí do retiro espiritual e que ela pode retornar pra esse número. Sim, é o meu. Obrigada, que nada, eu que agradeço.
E desligo, batendo o telefone lentamente contra o meu queixo. É, definitivamente ela precisa de um tempo a mais pra relaxar, e começo a concluir que o descontrole emocional com tendências violentas deve ser algo genético, e não de criação. Ou ambos. Contrabandear bebida para uma clínica pra tratar o alcoolismo e atacar os seguranças com uma garrafa quebrada é algo de caráter ou algo hereditário?
Vou para o terminal, peço um salgado que parece menos insalubre e tento não me assustar com o preço das coisas. Olho para o guichê e escolho a cidade que parece mais legal de conhecer. É, aquela parece ser boa, lembro de ter ouvido alguém falar que lá tinha muita coisa legal pra fazer, mas quero fazer uma parada nessa outra antes. Um amigo tinha dito que tinha passado férias lá e gostado. Curioso pensar que da última vez que entrei em um veículo foi o carro branco conhecido carinhosamente como "cata-doido" e agora estou entrando em um por vontade própria. Acho que fica mais confortável quando não tem uma camisa de força apertando seus braços, sempre é mais fácil sem uma.
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As incríveis desventuras de Morgana
RomanceDepois de passar os últimos sete anos em uma clínica psiquiátrica, Morgana tem alta e se vê tendo que aprender a viver fora dos muros, e o pior: ser adulta. Conforme vemos sua história ser contada por ela mesmo, adentramos nos seus medos, anseios...