Viva la amarga vida

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Quando abro os olhos, a primeira coisa que visualizo é um espelho com suporte no chão coberto por uma camisa xadrez. Passo os dedos levemente embaixo, e sinto a textura macia de uma cama que certamente não é a que eu durmo. Levanto, e sinto minha cabeça girar, tanto que coloco minha mão contra a testa e olho ao redor. Esse é o quarto da Isabela, mas como eu parei aqui?

Só um instante, porque pelo visto não é só minha cabeça que dói, minhas mãos também. Quando olho para elas, estão roxas. Minha mão direita está enfaixada e a esquerda com um evidente hematoma que pega dos dedos até meu pulso. Manchas vermelhas de sangue coagulado de um lado a outro... Não consigo fechá-las direito. Acho que não devo mais tomar de dois Zolpidem. Talvez eu tenha vindo pra cá dormindo, ou pedi auxílio pra ela de algum jeito e ela me deixou dormir... Sei lá, não consigo me lembrar de nada, só sei que estou com vergonha.

Nem minhas roupas estou usando, já que o que cobre o meu corpo é uma camiseta grande, já cinza... e uns shorts folgados. Fizemos alguma coisa? Puta merda, não.

— Não, não... – nego comigo mesmo – não aconteceu nada.

Mentira, eu não sei o que aconteceu, mas será que ela aceitou fazer algo com alguém que estava visivelmente drogada? Ou eu só não parecia estar? Não, não devo ter feito nada, nem sob efeito de medicamentos faço alguma coisa, muito menos sem eles.

Relaxa, Morgana, você precisa se concentrar. Qual foi a última coisa que se lembra?

Cheguei em casa, estava me sentindo mal e tomei as pílulas, liguei o computador e assisti aquela apresentação. Devo ter apagado perto do penúltimo movimento, ou coisa assim, não tenho tanta certeza.

O som da chaleira chia de fundo, e olho pela janela coberta pela cortina e miçangas. Não dá pra saber que horas são, mas dá pra saber que ainda é dia, e vejo o ventilador ligado em minha direção. Bocejo ainda grogue, levanto e meus pés descalços encontram um tapeta vermelho felpudo e desligo o ventilador. O quarto tem cheiro de tinta fresca, que se intensifica sem a ventilação, e me arrasto até a sala, onde encontro Isabela de costa, colocando água quente em duas xícaras e olhando de relance enquanto me sento no sofá. Ainda estou grogue da medicação. Pensei que seria tranquilo, mas acho que bateu forte por estar muito tempo sem tomar nada.

O sol entra pelas persianas, e Isabela, de calça moletom cinza e camisa de mangas azul escuro anda até mim com uma xícara, entregando-a em minhas mãos. Devo dar bom dia, boa tarde ou um pedido de desculpas formal? Ou fazer como os japoneses que, envergonhados por não conseguir cumprir uma missão, cortavam as próprias vísceras para fora? Acho que é seppuku o nome da técnica.

De primeira eu penso que é café, mas é chá. Ela deve ter lembrado que eu não tomo, mas na sua, pelo cheiro que invade o ambiente, é, daqueles fortes, sem leite e açúcar. Isabela, que usa pantufas com a face de coelhinhos – com orelhas pontudas e tudo – senta-se ao meu lado.

— Tá melhor?

Minhas bochechas queimam... Melhor do quê?

Dou de ombros e com isso, um gole no chá, que entra devagar e esquenta meu corpo no dia mais uma vez, frio. Só que ele já fumega o suficiente de vergonha, principalmente com ela me olhando assim, e seu sorriso acanhado.

— Eu tenho muitas perguntas... – ela diz entre um e outro gole de café. Meu coração petrifica, e olho para a porta de entrada. Será que se eu correr e me trancar em casa é uma possibilidade? Mas a realidade é que fico em silêncio – Mas entendo não querer falar disso.

Saber o que aconteceu e morrer de vergonha ou morrer de curiosidade e fingir que nada aconteceu? Volto a tomar o chá, que cai perfeitamente com um estômago que se revira pelos efeitos adversos do remédio.

As incríveis desventuras de MorganaOnde histórias criam vida. Descubra agora