- Quando será a seleção dos atores? - diz o diretor elencado, um homem alto, barbudo e com o cabelo desgrenhado e roupas largas.
- Semana que vem - Jaqueline responde, mostrando a lista de personagens para ele em um papel, com a referência de cada um - o roteiro piloto já está pronto, os outros dois posteriores em desenvolvimento...
Ele pega o papel, e encara sem grande pretensão.
- Já tem algum nome em mente?
E volta os olhos pra mim. Não é estranho quando você, de repente, uma pessoa que pouco interage com os demais, vê que sua opinião tem influência em alguma coisa e o pior, que ela tem peso?
- Não... - balanço a cabeça lentamente em negativa - ninguém em específico, mas, se possível, que se encaixe no perfil dos personagens.
- Como assim? - ele cerra os olhos, roçando os dedos na barba ao olhar para o papel.
- Se tem um personagem com arquétipo tal, o ator que vai desenvolvê-la tem que seguir com ele...
- É uma boa - Jaqueline pontua, batendo a caneta na mesa antes de se esticar na cadeira - diz manter a representatividade deles, não é?
- Se tem um personagem transgênero, o ator tem que ser necessariamente um? - ele olha confusa - E se a personagem for lésbica, também?
- Por que não seria? - cruzo os braços, voltando meu olhar pra ele.
- Quer que a gente chegue com cada ator ou atriz e pergunte da sexualidade e gênero deles? - ele dá um riso irônico - Eles podem simplesmente mentir pra conseguir o papel...
- As pessoas querem ver representatividade - Jaqueline pondera - o mesmo de sempre já tem aos montes por aí. Deram aval pro roteiro justamente por ser ao contrário disso.
- Eu acho que é um tiro no pé - ele coloca o papel na mesa de volta - já tenho um casting em mente perfeito pra isso.
Caso não saibam, escritores, sejam romancistas, dramaturgo, poetas, o que forem, além de serem levemente soberbos, tem um tino ainda pior com suas obras: são ciumentos. Sei que no meu segmento a adaptação é mutável, mas...
- Quer dizer que pra você não importa se o ator não conversa com a realidade do personagem? - cerro os olhos, deixando o ar sair pelos lábios entreabertos.
- O que importa é se ele faz um bom trabalho, seja homem ou mulher ou o que quer que se identifique.
Olha a pose dele, como se isso fosse uma brincadeira. Cada personagem nesse roteiro foi pensado pra ser assim por um bom motivo, não por mera figuração.
- Qualquer atriz pode entrar numa audição e dizer que beija mulher e depois ir dormir com um cara.
Ele diz isso rindo como um deboche, andando pela sala. Jaqueline me olha de relance, e volta a olhar pra ele. Estou cansada disso.
Não aguento mais alguém que não entende o que quero dizer com isso impor alguma coisa. Como se não soubesse do que eu quero, ou se não tivesse noção do que estou escrevendo. Não é sugestão, é imposição carregada de ironia em um quê de "deixa eu te mostrar como faz" incessante.
- Morgana, você tem que entender que...
E é assim que descobrimos que nossa paciência tem limites.
- O que você tem que entender é que essa é a minha imposição - levanto da mesa, apontando para o papel de casting.
Ele para de caminhar e olha pra mim da cabeça aos pés, e ri.
- Desculpe, mas o quê? - ele dá com a mão no ar - Quer saber mais das coisas do que eu?
- Eu sou a pessoa que idealizou página por página disso aqui - boto a mão no roteiro que está na mesa - e se tem um personagem trans, eu quero um ator trans. Se tem uma personagem lésbica, eu quero uma atriz lésbica. Se não quer andar com os meus termos, desculpe, mas vou dar essa conversa como encerrada.
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As incríveis desventuras de Morgana
RomanceDepois de passar os últimos sete anos em uma clínica psiquiátrica, Morgana tem alta e se vê tendo que aprender a viver fora dos muros, e o pior: ser adulta. Conforme vemos sua história ser contada por ela mesmo, adentramos nos seus medos, anseios...