Maçã podre

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Ela não me respondeu mais.

— Morgana?

Encaro as teclas a esmo à minha frente. Não atendeu as minhas ligações.

— Morgana Kercher - Moreau fala de fundo em uma entonação mais longa, mas não consigo prestar atenção.

O que eu fiz de errado?

— Morgana! - ela balança meu ombro, chamando minha atenção de vez.

— Desculpe, acho que... - minha voz falha - não estou no clima de tocar hoje.

— E desde quando você precisa de inspiração pra tocar?

— Não consigo me concentrar - viro o banco e me volto para ela, que coloca seu instrumento de lado, suspirando insatisfeita.

Desde que nos encontramos nós ficamos mais próximas, mas não o suficiente.

— O que está te incomodando?

Certo. Estou em crise e, pra piorar, não me envolvia com ninguém assim há anos, e possivelmente nunca a esse ponto, já que anteriormente tinha suas, digamos, particularidades.

Então, depois de tanto evitar, acabei cedendo aos meus sentimentos e, consequentemente, me senti tão à vontade que fiz algo que jamais pensei fazer um dia, que é dormir com alguém novamente. A cereja do bolo de tudo isso é achar que foi a melhor coisa que já fiz com alguém.

Depois, ela sai sem dizer nada e não fala mais comigo. Já vai fazer uma semana. Me sinto péssima. Há uma coisa presa na minha garganta que não sai, só se acumula, e pesa em meus ombros. Checo meu telefone com frequência esperando uma resposta que não chega e me sinto ainda pior.

Queria falar com Isabela sobre, mas ela está ocupada com seus próprios problemas pessoais, e não quero aceitar que a resposta seja a óbvia: ela só queria transar comigo.

— Acho que estou frustrada.

— Com seu novo trabalho? Pensei que estava indo tudo bem.

— Não é com ele - digo relutante - são outras coisas...

— Não sabe mais lidar sob pressão? Logo você?

A troco de que ? Levou minha saúde mental a frangalhos e anos até me recuperar em parte. Se lidar com essa cobrança horrenda fizesse bem, eu estava ótima, e não do jeito que estou.

— As coisas mudam - e olho para as teclas de relance. Ela ri.

— Sei bem disso - e abraça o instrumento - o que não muda é que você continua sendo a única pessoa que sabe realmente o que fazer com um piano.

Dou com os ombros, e Moreau pigarreia.

— Por que não larga tudo isso e vai viver comigo em Düsseldorf?

Dessa vez sou eu que rio.

— Você ainda toca pra caramba, se duvidar até melhor - ela vai pro meu lado gesticulando, se apoiando no piano -  vão brigar entre si só pra te ter. Falo com o diretor e depois do teste ele te inclui em dois tempos.

Não tenho o que dizer, então só a olho de relance e volto a encarar o teclado.

— Eu não posso simplesmente largar tudo e viver com você, Moreau - mordo os lábios devagar - as coisas não são assim... E outra, não quero voltar a tocar. Não assim.

— Por isso sumiu? - ela se volta pra mim - Não quis lidar com o peso da coisa?

— Só não quero mais ter que carregar um peso que não é meu, isso... - cerro os olhos - Só me causou sofrimento.

As incríveis desventuras de MorganaOnde histórias criam vida. Descubra agora