Pílulas de dopamina

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Para minha sorte, Camille acabou sendo a nossa diretora. Inclusive, ela já mudou a cor do cabelo pra rosa e fez um risco nas laterais, usando uma camiseta de uns dois números maior que o habitual e uma camisa tão folgada quanto indo contra a calça skinny de joelhos ralados. Já eu... Não se espera grandes mudanças visuais de mim além do esperado, com a diferença que resolvi aderir a peça que ganhei há uns dias atrás.

Hoje já é último dia de audições, e ainda não fechamos o ator principal. Já vimos pelo menos vinte atores, dos mais experientes a novatos, mas nenhum nos agrada. O personagem principal é alguém carismático, do tipo que te chama atenção no momento em que bate os olhos nele, peculiar, único. Sabíamos que não seria uma tarefa fácil, ainda mais com as especificações que o personagem pede, mas todos... Parecem superficiais demais.

E o ritmo de trabalho, que já é intenso, só vai se agravar conforme começarmos as gravações. São muitos pormenores até que se chegue ao produto final... E é cansativo. Estou há dias só acordando, comendo, vindo pra cá, saindo já tarde da noite e indo pra casa só pra dormir. Divido meu tempo entre ficar com Camille e na sala com os roteiristas adjuntos, que são um rapaz e uma moça. Nos reunimos e debatemos cada parte elencada e, para nossa sorte, nenhuma discussão até agora. Nossas divergências são debatidas até chegar a um acordo, e não gosto da ideia de dar a palavra final. É um trabalho colaborativo embasado no que fiz, não a satisfação de minhas vontades. Sei que sou só parte de um trabalho, não ele inteiro.

E Camille diz que é justamente meu jeito de pensar que faz com que trabalhar comigo seja mais fácil. Passamos o dia juntas no mesmo espaço, então é necessário que nossa relação seja boa. Além do mais, temos ideias em comum que facilitam o processo.

— Ainda faltam mais cinco – ela diz olhando pro tablet – eu espero que pelo menos um desses seja ideal pro personagem...

Afundo na cadeira e a vejo tomar seu terceiro copo de café, suspirando exausta. Apesar de estarmos sentadas em um espaço confortável, estamos nisso o dia inteiro. É impossível não se senti desgastada.

Os quatro posteriores que entram dão o mesmo que vimos anteriormente , e antes de entrar o último, ela pressiona as têmporas, exasperando.

— Ainda falta mais um – digo tentando reconforta-la – vai que seja ele.

— Tomara, porque não sei se tenho cabeça pra esticar isso pra amanhã... – ela passa o indicador pelo tablet, falando em direção a porta – O próximo, por favor.

Então ele entra. Um rapaz que deve ter mais ou menos minha altura, cabelos na altura das orelhas, mas penteado pra trás, arrumado. Também usa uma camisa social preta de mangas compridas enroladas até seu cotovelo, calças jeans e um tênis gasto. O que mais me chama atenção são seus olhos, de uma maquiagem pesada, lápis de olhos malpassados, uma cruz que pende em seu pescoço... É como ver o personagem materializado na nossa frente.

Camille pergunta qual seu nome e a cena ele vai atuar das que selecionamos, e ele escolhe a sete, que considero a mais complexa por ser uma das mais delicadas. Se ele já tinha me prendido a atenção pelo visual, agora a tomou por inteiro.

E durante toda a sua atuação, não consigo tirar os olhos dele. Seus gestos, da sua fala, dos seus olhos tão expressivos, como se ele tivesse encarnado o personagem sem mesmo o conhecer por inteiro. Camille me olha de relance enquanto sequer consigo desviar o olhar.

Quando termina, ele responde a algumas outras perguntas técnicas, agradece pela oportunidade e sai. Ela, ainda acessando o tablet, começa a falar.

— Você gostou dele?

— Eu o acho perfeito pro papel – dou com os ombros – mas, e você?

— A atuação dele é meio crua... – Ela vira pra mim – mas é o mais expressivo de todos. Orna bem com o papel.

As incríveis desventuras de MorganaOnde histórias criam vida. Descubra agora