Encontro de família

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— Morgana?

Viro para o lado direito, voltando a atenção para a pessoa que me chama de longe. É Camille, apagando o cigarro e jogando o restante no lixo, sentando ao meu lado.

Hoje é um daqueles dias que a realidade meio que te bate na cara e te chama pra brigar.

— No que tanto pensa? – diz ela dando um breve sorriso amigável, apoiando as mãos no banco em que nos encontramos.

No que eu tenho que encarar mais tarde.

— Ah, sei lá... – dou com os ombros, fazendo um bico com o lábio inferior – na vida.

Na verdade, também estou tentando organizar a sequência de fatos da minha vida. Não sei se essas coisas são comuns a qualquer um, mas, para alguém que passou tanto tempo com uma rotina tão regrada, qualquer mudança traz impacto suficiente para me deixar com certa ansiedade pelos eventos futuros.

Talvez outras pessoas tem uma vida emocionante em que coisas legais acontecem o tempo todo, mas ainda estou me acostumando com a ideia de poder tatear essas possibilidades de fato, não só pensar nelas. Tudo na prática é mais complicado, como as filmagens, que seguem sem grandes problemas, mas todo dia é um contratempo diferente. Ainda bem que, até agora, nossa relação anda boa.

Mas, em compensação, desde que Isolda saí de casa, ando me sentindo desnorteada. Desde que voltara naquele dia, soube por meio de um recado seu – deixado à mão – que, depois de perceber que suas atitudes causavam dor à pessoa que mais amava a ponto de ela ter ido embora sem olhar pra trás, de alguém que esperava que ela pudesse ser um suporte como esperava ser, fez ela refletir sobre o seu papel na minha vida e na dela.

Então, ela se internou de forma compulsória em outra clínica – algo que ela não tinha feito desde então – mas sem não antes deixar o quebra-cabeça montado e pendurado na parede acima do sofá, e concluiu falando que sabia que eu ia voltar, mesmo que demorasse.

O que me fez, depois que Isabela saiu do apartamento, chorar copiosamente por um dia inteiro e momentos alternados pelo resto da semana.

Em um primeiro momento, odiamos a nossa vida e sempre nos perguntamos porque esse tipo de coisa acontece. "Por que minha irmã é assim?", "por que eu tive que passar tanto tempo fora?" e o principal, "por que não posso ter uma vida normal?"

— Se quiser conversar com alguém sobre... – ela enfia as mãos no sobretudo que usa.

— Estou bem, mas obrigada por perguntar – digo no automático. A última coisa que gostaria de falar com a minha parceira de trabalho é de como a minha vida é um caos generalizado desde o momento que nasci.

Sem contar que, saindo daqui, vou ter que encarar algo que posterguei há muito tempo, e sim, é necessário. É nessas horas que começo a me arrepender de ter jogado as pílulas que a Isolda me deu no lixo. A minha vontade é de tomar meia cartela e dormir por dias seguidos e acordar, de preferência, sendo outra pessoa.

Ela não fala mais nada, mas se levanta logo em seguida e gesticula para que eu a siga. Vamos para o set e acompanho um pouco das gravações antes de ficar enfurnada em uma sala sem saber que horas são.

Mas a tal hora chega, e na saída, faço os exercícios de respiração por pelo menos cinco vezes antes de sair. Não vou pensar muito nisso. O local escolhido não é longe daqui, a poucas quadras, e escolho ir andando. É o único exercício que ainda posso fazer e, quando chego no local marcado, ela está na mesa próximo da vitrine, tomando um café preto, rente, séria.

Paro onde estou, e tomo o ar mais uma vez. Sei que, vendo de fora, minha cara indiferente deve passar que não ligo pra situação, mas a realidade é que estou morrendo de medo de ter que falar com ela porque não sei o que pode sair dessa conversa. A última vez que conversamos, eu a deixei falando sozinha e tenho certeza que ela vai trazer isso à tona.

As incríveis desventuras de MorganaOnde histórias criam vida. Descubra agora