Fora de contexto

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Me informo com o balconista sobre os pontos turísticos dali, os quais vou visitar após o café. Conheço o parque que tinha passado ao lado no escuro, passeio um pouco nele, aprecio algumas plantas. Pego o ônibus indicado até a cachoeira próxima, mas não mergulho. Só enfio os pés na água gelada e passo alguns minutos ouvindo o barulho da água, que me ajuda a me desligar dos meus pensamentos inoportunos, apreciando a natureza.

Uma hora dessa deveria estar fazendo alguma atividade recreativa, que no meu caso era me enfurnar na biblioteca do local e digitar frívola alguma ideia. Na minha mochila está aqueles originais as quais achei que foram os melhores que fiz, e quando digo isso não que esteja ótimo, e sim os menos piores. Mais da metade nunca foi concluída. Boa parte foi jogada no lixo, rasgada, incendiada quando possível.

Já deu pra perceber que sou muito crítica comigo mesmo. Só fui convencida a trazer isso porque mais de uma pessoa tinha dito que tinha potencial, mesmo achando que estavam falando isso por pena. No final das contas, ela só diz que tenho que me valorizar mais e que sou incrível, essas coisas legais que são ditas pra alguém mentalmente perturbado pra que ele veja algum sentido na vida.

E, se ela me visse falando isso, me repreenderia de novo.

A propósito, sou uma shakespeariana de carteirinha. Olha como está meu exemplar de Rei Lear, por exemplo. Gasto e cheio de anotações. Devo muito a ele por ter começado o processo de me expressar através da escrita. Foi no meio da dramaturgia trágica que me senti realmente acolhida, e acredito que isso se dê porque minha vida desde que nasci tem sido uma, então é difícil não se identificar.

Saio de lá e vejo mais outros pontos turísticos. Uso a câmera de péssima qualidade do celular dado a mim pra tirar algumas fotos nos monumentos, e depois do almoço, continuo a minha miniaventura. Há mais um parque na qual caminho sem perceber a hora e, no final da tarde, paro em uma lanchonete para comer, e logo depois em uma livraria. O cheiro de livro novo me embriaga, e ali me perco, sem deixar me abalar pelo fato que sequer me lembrava como era ir em um. Compro alguns ensaios e volto para o hotel no começo da noite, onde assisto televisão e leio até dormir.

Quando acordo, tomo café, ando pelo pequeno centro comercial, evitando multidões, mas também não andando em locais solitários. Faço isso como um exercício para me acostumar com esses atos triviais do que com algum outro objetivo, e depois do almoço e do pagamento da estadia, vou até o terminal. Se estou satisfeita com esse passeio? Não estou explodindo de felicidade, mas também não me desagradou em nada. Acredito que estou aproveitando como eu posso, um passo de cada vez. Mais algumas horas de viagem com minha playlist selecionada me acompanham, assim como uma senhora evangélica que senta ao meu lado e profere alguns atentados aos direitos humanos em nome de Deus, mas nada que não possa ser ignorado com um confirmar de cabeça para não dar trela ao assunto e aumentar o volume da música.

Chego lá um pouco mais tarde do que ontem à noite, e essa definitivamente é uma metrópole. Me sinto que nem o carneiro que assistia quando era criança, que passava por uns perrengues na cidade grande.

Mas hoje é sexta-feira, e dizem que é dia de curtir e aproveitar, agora o quê? Descobrirei agora.

Com minha mochila devidamente presa a mim, pergunto a um vendedor de cachorro quente onde fica a região animada da cidade. Ele me indica pegar um ônibus e, depois de devorar o lanche dele – já deu pra perceber que aprecio muito comer – vou até lá.

Quando se imagina um local boêmio, imaginamos festa, curtição e luzes convidativas, mas o que nos deparamos é barulho excessivo, pessoas bêbadas gritando e olhares intrusivos que te deixam desconfortável. Ótimo. Minha vontade é de ir embora, mas já que estou aqui, por que não? Coloco meus fones de volta, e desço a rua, desviando dos demais.

Não gosto de pessoas bêbadas. Digo, nada contra quem bebe até cair, afinal acho justo que cada um tenha seu modo de escapismo, mas não consigo não remeter a minha irmã, que foi tão seduzida por isso que não conseguiu mais sair. Muitos julgam os toxicodependentes, mas relativizam o vício em álcool.

Muitos dizem "ei, é legal beber muito, faça isso se não você não será mais legal", mas os mesmos viram a cara quando você passa por problemas derivados disso, e então viram a cara. Ela achava que tinha amigos, mas não tinha. Achamos que tínhamos uma família, mas também não tínhamos. Se ver sozinho é doloroso, mas achar que estava acompanhado e perceber que no final das contas, nunca esteve, é mais doloroso ainda.

Mas justamente a curiosidade sobre isso que me faz ir, por mais irônico que pareça, até esses bares.

Paro em frente a um com uma bandeira arco-íris na frente. Ele tem dois andares e uma arquitetura antiga, talvez uma casa antiga reformulada, e entro. Lá está relativamente cheio, mas bem mais tranquilo do que do lado de fora. Sento em uma das cadeiras do balcão. A luz é fraca, uma mistura de rosa e roxo, e algumas pessoas dançam em um local mais afastado. Peço uma água e coloco meus itens no colo.

Olho ao meu redor, as pessoas conversam, riem, interagem como se fosse a coisa mais simples do mundo. Até para eu pedir essa água minhas mãos ficaram suadas. Não sou bem um poço de extroversão mesmo antes da minha longa estadia, então puxar assunto além do necessário está fora de cogitação. Além do mais, não sei como fazer isso. Apesar de não ter passado os últimos anos dentro de uma caverna sem nenhum tipo de atualização do que acontecia aqui fora, na prática é diferente, como se eu fosse uma falha, e talvez eu seja, para o desespero da minha psicóloga que passou os últimos anos tentando me convencer ao contrário.

Além do mais, como vou conversar com alguém sem citar o que era minha vida? Enquanto uns falam de faculdade, trabalho ou o término com algum namorado ou mal de alguém do seu desagrado, o máximo que tenho a falar são o quanto de medicamento já tomei, discorrer a fundo sobre minhas leituras preferidas e nas situações vulneráveis que presenciei. Isso, no mínimo, assustaria a pessoa.

Por mais que eu tenha sido preparada nas últimas semanas sobre a vida social, tudo é muito estranho. E talvez eu também esteja sendo estranha para as pessoas sem perceber. Abrir a boca e dizer que passou os últimos sete anos dentro de uma clínica tem a equivalência de alguém que passou anos na cadeia e agora, reabilitado, tenta a vida lá fora. Por mais que se esforce, sempre será estigmatizado. Ou sempre será bandido, ou sempre será maluco. Para a maioria, não há meio termo.

O que me resta é assistir o programa que está passando na televisão. Quando se passa tanto tempo dentro de uma rotina, a liberdade se mostra mais predatória do que acolhedora. Não sei o que fazer, para onde ir, qual será meu próximo passo. Sou só guiada pela força da minha intuição que nem sempre está certa.

Mas sei que preciso de um lugar para ficar, pelo menos até as próximas semanas. Devo ficar em um hotel ou alugar um apartamento, de preferência mobiliado? Se eu for no aluguel, vai aparecer na minha ficha onde eu fiquei? Dizem que quando você tem dinheiro, não se importam muito com isso.

Olho para o relógio. São nove e quarenta da noite, e percebo que não sirvo pra vida noturna. Pago a água e saio, descendo a rua a esmo. Tem muitas pessoas por aí, vivendo a vida delas enquanto eu... Tento viver a minha. Não sei se estou fazendo o certo ou se ao menos tem um certo. Coloco os fones e aproveito o resto da bateria do meu MP3 enquanto caminho. Vejo mais gente em bares, nos telefones modernos, na música a qual é só um ruído, e essa mochila já tá ficando pesada. Sinto que um calo começa a ensaiar aparecer no meu pé esquerdo, e suspiro.

Chego em uma que tem vários prédios, na maioria residenciais. Essa aura de cidade grande me causa angústia, e paro em frente ao que achei mais bem-apessoado que está escrito "aluga-se apartamentos." Ele deve ter uns dez andares, não tenho certeza, mas está em um tom cinza que outrora já foi branco. Algumas roupas penduradas em varais que ficam para fora complementam o cenário, e ouço um cachorro latir ao longe.

Olho ao redor para poder memorizar o endereço e vir amanhã, porque por ora, só quero dormir. Procuro pelo hotel mais próximo, pago a pernoite adiantada e, depois de dar liberdade aos meus pés, me atiro na cama e durmo. A vida boêmia já foi o suficiente pra mim por hoje.

As incríveis desventuras de MorganaOnde histórias criam vida. Descubra agora