It only hurts when I'm breathing

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Era um sábado, por volta das três da tarde e ela estava sentada no chão do chuveiro. Era Maio. Essas coisas ela sabia. De resto se sentia completamente dissociada do mundo. As coisas começaram a dar errado no altar ou há dois anos atrás quando ela não percebeu o canalha que entrava em sua vida? Não saberia dizer. O que sabia era que o vestido de noiva ficava cada vez mais pesado, e ela sentia como se o monte de tecido fosse a engolir. Bem que poderia, só assim essa dor que estava sentindo iria embora de vez.

Era um sábado de Maio. Era o dia do seu casamento.

Sua empresa e amigos lotavam a igreja, mal conseguiam acreditar que Angélica... a grande Angélica Viana... se casaria. Conhecida por ter um pulso firme, ser irredutível em seus ideias e até mesmo autoritária, a ruiva tinha se encantado com o jovem engenheiro que tinha conhecido em uma convenção. Diego Vasconcelos era o nome do sortudo. Virou o mundo da ruiva de cabeça para baixo.

Berenice, advogada da empresa e melhor amiga de Angélica desde a época da escola, achou até estranho a amiga se encantar tão rápido, mas o olhar brilhava e ela deixou a amiga ir de cabeça nessa história. Era a primeira vez que Angélica ficava tão alegre, aberta, depois da morte dos pais.

O acidente tinha acontecido há 4 anos, no litoral de São Paulo. Ramiro e Amanda derraparam na pista e o carro entrou na contra mão. A morte foi no local do acidente. Depois daquele dia, dificilmente via a amiga se divertindo. Hoje, com 31 anos, a arquiteta parecia uma senhora de 90 anos de tão ranzinza. Diego tinha sido um sopro de vida e juventude. Tinha surgido como um clarão, um raio no meio da escuridão.

Trouxe Angélica de volta a vida divertida e a mudança fez bem para ela.

Até agora.

Berenice entrou no banheiro e tirou o sapato. Entrou no box de roupa e tudo, se abaixou na altura da amiga.

— Vem, amiga, me ajuda a te tirar desse vestido.

Angélica estava anestesiada.

Abandonada no altar pelo noivo.

Na frente de todos.

Patético.

Berenice conseguiu puxar o vestido para baixo com muito sofrimento. Devagar banhou a amiga, lavando seu cabelo. A essa altura ela já estava enxarcada também, mas não tinha nada que ela não faria por sua amiga agora. Ela nem ao menos conseguia imaginar a dor que ela podia estar sentindo.

Angélica não tinha falado nada desde o surto dentro da igreja, onde tinha chorado, gritado, mandando todos embora. O padre tentou a acalmar, mas ela estava sozinha. Aquela dor era dela apenas.

— Vamos sair desse box, eu vou te vestir e você me espera para eu te levar para a cama.

Berenice gritou por Duplex, pediu para que ele trouxesse os dois roupões que ela tinha colocado na cama de Angélica. O marido apareceu na porta do banheiro e Berenice agradeceu. Ela tirou a roupa molhada e colocou o roupão. Envolveu Angélica no tecido felpudo e a puxou para fora do banheiro, a levando até a cama.

Devagar, Berenice secou o cabelo dela. E quando acabou de ajeitar a amiga, a deitou na cama, se deitando ao seu lado. A essa altura sabia que Duplex tinha ido para a casa deles com Caio, deixando as duas amigas sozinhas. Angélica a olhava, os olhos vermelhos e inchados. Estava calada. Berenice segurava sua mão, esperando.

— Quando você quiser falar o que tinha naquela carta... — a morena começou, mas se calou.

Angélica fechou os olhos. As palavras ecoavam em sua mente como um castigo eterno. ''Você nunca foi mulher suficiente para mim, fria na cama como uma pedra de gelo e mandona fora dela como um homem, não preciso de uma mulher assim. Quero uma dama, uma princesa que me tenha como seu herói.'' Diego queria uma pessoa fraca que fosse fácil de manipular. E ela quase se tornou essa pessoa. A arquiteta abriu os olhos.

— Dói muito. — ela disse em um sussurro.

Berenice apenas a abraçou.

O pânico veio no fim da noite, quando Berenice estava na cozinha esquentando algo para comerem e escutou um barulho de queda no quarto. Correu na velocidade da luz e o que viu partiu seu coração em mil pedaços pela segunda vez no dia. Angélica tinha as mãos na barriga, entre suas pernas escorria sangue.

Mais tarde, no hospital, foi confirmado o aborto. Era uma gestação recente, pouco mais de um mês, Angélica nem ao menos sabia. Berenice estava ao lado dela quando ouviu a notícia, e apertou a mão da amiga como se ela mesma precisasse de apoio. O médico ofereceu seus sentimentos pela perda e saiu do quarto. Pela segunda vez, Berenice a viu sem reação.

Depois de alguns minutos, Angélica suspirou, olhando para um canto qualquer do quarto.

— Eu sempre quis ser mãe.

Depois da alta para casa, Angélica pediu para ficar sozinha. Ainda que Berenice estivesse preocupada, a deixou. Não sem antes pedir para o porteiro do prédio ficar de olho em tudo. Naquele fim de noite, princípio de madrugada, a ruiva se olhou no espelho cansada. Sem pais, sem marido, sem filho. Se via sem rumo. Certamente se não fosse por Berenice, estaria perdida. Teria facilmente cometido uma loucura.

Ela precisava parar.

Angélica sempre trabalhou muito, até mesmo antes de seus pais morrerem ela tinha um ritmo frenético, só parava em dias que o sindicado trabalhista a obrigava a parar. Depois da morte deles, só se afundou mais ainda. Sabia que se entrasse cada vez mais nesse mundo do trabalho, nunca mais sairia.

Ela precisava parar.

Precisava respirar novos ares, sair de São Paulo. Cuidar de coisas que não cuidava, mas que eram suas e mereciam sua atenção igual.

Deitada na cama, em repouso por exigência médica, Angélica começou a procurar passagens aéreas e quando viu já tinha um bilhete de viagem e um carro contratado para a levar aonde queria ir. Fechou os olhos e se deixou levar até o único lugar do mundo onde ela poderia se curar agora, se fortalecer.

Na semana seguinte, ela terminou todos os projetos pendentes e na última sexta-feira do mês de maio, estava no aeroporto. Berenice a abraçava com força, em seguida Duplex também a abraçou. Caio estava em seus braços, o menino estava agarrado no pescoço da Tia Angélica, sem querer sair.

— Tem certeza que é isso mesmo que você quer, mana? — Berenice perguntou.

— Tenho... tenho sim, eu preciso desse tempo... preciso sair de perto de tudo isso... — ela falou firme, mas ficou sentida com o olhar triste da amiga. — Não fala assim, logo você e Duplex entram de férias e podem ir até lá ficar comigo um pouco.

— Então você vai ficar bastante tempo por lá? — Duplex perguntou.

Ela não sabia responder.

No carro, horas depois, ela refletia sobre como seria. A Angélica sonhadora estava morta, Diego a tinha levado embora. Tinha a destruído com meia dúzia de palavras mal escritas. De uma coisa ela tinha certeza, nunca mais deixaria homem nenhum pisar nela daquele jeito. Ela era Angélica Viana, oras, os homens sempre lamberam o chão que ela passava. Ela tinha poder, tinha bons negócios. Jamais se apaixonaria de novo se no final das contas teria que deixar de ser ela mesma.

Monte Castelo era uma cidade pequena – bem pequena – que ficava no Vale dos Vinhedos, uma região perto de Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul. A cidade era tão pequena que era considerada uma vila, sustentada basicamente pelos fazendeiros e produtores de vinho, com uma população que trabalhava basicamente para o comercio dos produtores locais.

Os Viana eram do Sul, mas seu avô, brigado com seu bisavô, resolveu se mudar para essa grande fazenda e começar na produção de vinho. Quando Mariano morreu, Luigi ficou com uma herança boa e resolveu se mudar para a capital Porto Alegre. Os vinhos começaram a fazer sucesso, e esse  sucesso refletiu em Ramiro, seu filho, nunca querer sair do estado do sul. Montou sua vida lá.

Angélica, porém, desviou de tudo que ele esperava e quis virar arquiteta. Já tinha brigado várias vezes por isso, sua mãe ajudava muito pouco também.

E agora, cá estava ela, voltando para casa.

O caminho para Monte Castelo nunca foi tão cheio de reflexões e mais reflexões.

Monte Castelo Onde histórias criam vida. Descubra agora