As noites de lua cheia têm um significado bem único para os irmãos Léo e Lena: invadir o cemitério e roubar dos mortos que recentemente reviraram a terra. Correr do coveiro e vender as joias adquiridas tornou-se parte da rotina dos órfãos, que lutam...
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A segunda-feira foi longa. Léo reservou o dia para treinar a pontaria de Lena com a atiradeira que comprara. A mira da menina, entretanto, era péssima. Errava todas as garrafas de cerveja postas sobre o caixote em que moravam. Parecia até uma capanga de filme de caubói. Seu tutor a ensinava, demonstrava e até atuava, mas ela só hesitava. Suas mãos tremiam sem motivo.
— Lena, por que tu 'tás com medo? São só garrafas!
— És tu quem vai limpar a sujeira, é?
— Mas não foi tu quem comprou a atiradeira com o *teu* dinheiro? Não sabia que cagavas dinheiro pra poder desperdiçar assim!
— Claro que não! É só... mais difícil do que parece!
— Mana, eu já te expliquei mil vezes! — Tomou o estilingue das mãos dela. — Vira ele de ladinho assim. — Mostrou. — Fecha um olho, mira um pouco pra cima, leva a corda até a bochecha e solta! — Acertou uma das garrafas. — É fácil! Tenta agora. — Devolveu a atiradeira a ela.
A garota respirou fundo e fez os mesmos movimentos que seu irmão. Chegou até a sentir a textura da pedra em seu rosto. Com seu coraçãozinho palpitando, realizou um tiro certeiro. Sua bochecha ficou até marcada com o atrito.
— Aê, garota! Parabéns! — comemorou o rapaz.
Ela massageava a bochecha, chateada.
— O que foi? — perguntou ele. — 'Tás pensando na morte da garrafa?
— Por que tu 'tás me ensinando isso agora?
— Pra tu te defender, ué?
— Eu não quero machucar ninguém, mano... Nem mesmo as pombas... Eu tenho dó!
Léo fez um gesto raro: a segurou pelos ombros e a abraçou:
— Tu és a menina mais forte que eu conheço, Lena. Não penses que eu quero que tu machuques os outros... Eu só não quero que o mundo te machuque mais...
***
O dia tão esperado chegou, com direito a clima favorável. Era por volta das 7h50min, quando nossos ladrões passavam pela Praça da Coragem, rumo ao ancoradouro. De repente, Léo percebeu que sua irmã já não estava mais o seguindo. Encontrou-a diante da grande estátua do herói.
— Ô, Lena! — chamou ele. — O que é que tu 'tás fazendo?
— Pedindo por um pouco de coragem — respondeu, orando com os olhos fechados.
O primeiro pensamento dele foi o de apressá-la; não queria chegar atrasado. No entanto, apenas suspirou baixinho, aproximando-se de sua cúmplice:
— 'Tás com medo, é?
— Um pouquinho.
— Se quiseres voltar pra casa, podes ir. Não é como se eu fosse jogar na tua cara-
— Nem pensar! — interrompeu.
A garota abriu os olhos com as sobrancelhas levantadas. Não desafiou a autoridade de seu irmão para voltar atrás tão facilmente.
E então, os dois andaram com pressa pelo resto do trajeto. Quando chegaram lá, todos já estavam os esperando, inclusive dois membros do Estandarte Escarlate. A primeira coisa que Marini fez foi questionar a presença de sua princesinha:
— Ué? Piquetuxa? O que você está fazendo aqui?!
— Eu vou também! — sorriu.
— Mas! — o homem-peixe dirigiu-se a seu amigo — Léo! Pra onde foi o seu juízo?! Ela é só uma criança!
— Que é que eu fiz agora, mano?! — perguntou o larápio, indignado. — Foi ela quem quis vir!
— Ei, fica tranquilo — intrometeu-se a pequena. — Eu não vou atrapalhar. Sei me defender agora! — Tirou o estilingue da bolsa. — Viu?
O brutamontes pôs a mão sobre a testa, preocupado como sempre. Sentia o início de uma nova enxaqueca:
— Ai, ai... Eu vou ficar de olho em você, viu, mocinha? — Pôs o braço sobre os ombros dela. Momentos depois, fez o mesmo com o arruaceiro. — Você também não me escapa, não, Leozinho!
Zacarias, todo de preto como de costume, havia acabado de terminar seu cigarro. Ele vestia um cinto sobre seu ombro direito, com uma espada curta embainhada nele. Sua mochila de componentes ritualísticos estava no chão, além da boa e velha Isabel.
— São todos vocês que vão para o manguezal, então? — deduziu o velho. — Bom trabalho, Léo. Conseguiu mais gente do que eu esperava.
— A gente tá animado com a expedição! — comentou ele.
— É bom ouvir isso... Se todos já estão aqui, não vejo porquê não irmos agora. Temos que aproveitar que a maré está baixa. Não estão se esquecendo de nada, estão?
Todos negaram com a cabeça. Lena trouxe sua velha mochila de uma alça só. Léo estava com os bolsos cheios. Marini levava uma vara de pesca e um bidente, além de uma enorme bolsa d'água. José Romeo, que finalmente retornara a sua ordinária elegância, estava com bagagens até o pescoço.
Ouviu-se, então, ruídos de máquinas acordando. Eram os dois botes vermelhos que levariam o grupo até seu destino. Pouco se via dessas novidades mecânicas em Guaiatuba.
— Seu Zacarias — chamou o larápio —, tu achas que a expedição vai demorar quantos dias?
— Bem, vejamos... Com a lua nova, o manguezal vai alagar quase que por completo. Vamos ter que procurar abrigo antes que escureça... Como não vamos usar a noite a nosso favor, acho que demoraremos um ou dois dias. Varia muito.
— Eu nunca acampei antes! Estou tão animado! — exclamou o repórter distraído.
Zacarias inclinou-se um pouco e cochichou no ouvido do malandro:
— Aposta quanto que ele vai reclamar sem parar das picadas dos pernilongos?
— Hum... 20 reis... Fechado?
— Podemos ir então? — o marinheiro chamou a atenção dos dois. — Quanto mais rápido voltarmos, melhor.
Todos trocaram olhares. Não tinham mesmo tempo a perder. Se estivessem com sorte, voltariam hoje mesmo. Dividiram-se em dois grupos pelos barcos e partiram à jornada.
Léo juntou seus colegas como um detetive liga os pontos de um caso prestes a ser resolvido. Todos tinham seus motivos para estarem lá. Alguns queriam viver a experiência fazendo o bem. Já outros, algum tipo reconhecimento para, enfim, poder ter um futuro digno naquela terra de ninguém. Acima de tudo, uma coisa era certa: cada um portava consigo, por mais insignificante que fosse, uma pequena centelha de esperança, cultivada subconscientemente pelo simples desejo de uma vida melhor.