As noites de lua cheia têm um significado bem único para os irmãos Léo e Lena: invadir o cemitério e roubar dos mortos que recentemente reviraram a terra. Correr do coveiro e vender as joias adquiridas tornou-se parte da rotina dos órfãos, que lutam...
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Quase uma semana havia se passado desde então. O céu estava mais cinzento do que nunca, ameaçando despencar um temporal que nunca caía. O clima certamente não ajudava a melhorar o humor de nossos órfãos, que estavam completamente desolados.
Lena não comia, como se tivesse perdido a vontade de viver. Estava seca de tanto chorar, com os olhos inchados, envolvidos por olheiras enormes. Seu irmão tentava de tudo para animá-la. Abriu mão de seu precioso dinheiro para trazê-la doces e presentes, mas de nada adiantara. Ela estava absorta em seu próprio pranto de órfã mais uma vez.
Léo não havia conseguido traçar vestígio algum do bandido que lhes roubara. Entretanto, o que ele não tinha de altura, tinha de astúcia. Com seus um metro e cinquenta e sete, deduziu que o ladrão do pingente era ninguém menos que o próprio Pesadelo dos Nobres. Chegou a esta conclusão quando soube da tentativa falha de assassinato de Madame Rosane Trindade.
Madame Cor-de-Rosa, como é chamada por seu nome artístico, é uma empreendedora muito conhecida no ramo têxtil da região, além de fundadora e diretora da Ponto-Cruz, uma guilda de costureiras. Definitivamente, uma das pessoas mais ricas de Guaiatuba.
Apesar de não se encaixar no perfil das vítimas, era iminente que entraria cedo ou tarde para a lista do assassino. Seus gritos, entretanto, a salvaram do ataque, realizado na mesma noite em que o colar fora roubado. A mulher havia dito em entrevistas que o invasor era como um vulto cinza, com olhos castanhos claros, sem brilho, nem misericórdia. Para Léo não restavam dúvidas: tratava-se do mesmo vigarista.
Se o bandido seguisse seus modus operandi, o próximo ataque aconteceria somente em algumas semanas, sob a graça de uma lua cheia. O jovem ainda tinha tempo para se preparar. Queria recuperar o medalhão e, consequentemente, sua irmã de volta.
Mas por que um sicário como aquele roubaria o colar sujo e desgastado de sua mãe? Uma joia tão ordinária quanto mármore branco de uma pia de cozinha, cujo único valor é o sentimental? Era um mistério para Léo.
Naquele início de tarde nublado, ele caminhava cabisbaixo pela Praça da Coragem, frustrado com os dias sufocantes que teve. Sentou-se à beira da fonte e observou o movimento da rua e dos pássaros para se acalmar. Viu, lá longe, uma certa mocreia quem nunca calava a boca: Dona Gertrudes. Ela estava fofocando com outra velha. O moleque foi se aproximando aos poucos:
— Ficaste sabendo? — Dona Gertrudes puxou assunto com sua amiga. — Lembras daqueles mercenários que foram investigar o tal do sumiço dos caranguejos lá no manguezal?
— Claro, Gertrudes. O que tem eles? Eles voltaram?
— Pior! Só um voltou. Morto, ainda por cima! Acharam o corpo dele hoje de manhãzinha no rio Castel.
— Oh, meus deuses! Que horror! Como ele morreu?!
— Diz que foi afogado, mas acho que nem os médicos sabem dizer direito... Tentei ver o corpo, mas não deixaram! Os pescadores me contaram que ele estava todo inchado, sem uma mão e com o pescoço todo machucado.
— Barbaridade! Será que foi um monstro?
— Não sei... — Dona Gertrudes encolheu os ombros. — Mas, sabe, Dona Marri, a coisa mais estranha foi o que ouvi a filha da minha vizinha falar enquanto eu despretensiosamente varria meu quintal. Aquelazinha que é enfermeira.
— E o que ela disse?
— Que além dos agentes do prefeito andando pelo hospital, o coitado do defunto nem vai ter um velório. Vão enterrar direto!
— Mas já?! Pra que tanta pressa?!
— Se soubesse, eu já teria te contado, mulher!
— Aí tem coisa, viu? Quando que vai ser o enterro?
— Hoje mesmo, mas não divulgaram nenhum horário. Quer ir comigo lá agora?
— Claro, Gertrudes. Será que a gente vai conseguir ver como ficou o corpo?
— Acho que não, Dona Marri. A gente vai chegar lá, e ele vai estar todo enroladinho na mortalha! Só desenterrando, daí!
E mais uma vez, Dona Gertrudes era mais útil que qualquer jornal para Léo. A curiosidade, assim como nas senhoras, atiçava o garoto. Havia algo que as autoridades estavam escondendo. Será que o defunto tinha alguma relação com o Pesadelo?
O moleque se pusera a quebrar a cabeça, encarando o céu vazio. Seu cérebro, esgotado emocionalmente, dispensava qualquer ideia boa. Se invadisse o cemitério de madrugada, poderia conseguir alguma resposta com o cadáver. Quem sabe até um daqueles coletes de couro que membros de guilda usam? Talvez um par de botas melhor? Só descobriria se tentasse.
A única coisa que tinha certeza era de que não estava cem por cento preparado. Aquela não seria uma noite clara e teria o dobro de trabalho sem sua cúmplice. Era como se, realmente, sem Lena ao seu lado, tudo ficasse um pouco mais escuro.
Sobretudo, porém, tinha uma rara determinação ditada pela raiva em seu coração. Para poder acertar as contas, teria que se preparar para o que viesse, comendo das migalhas que a vida lhe jogasse. Não sabia se, ou quando, enfrentaria o inimigo, mas estaria disposto para tomar de volta o que era seu.
Com o peito pesado em deixar sua pobre parceira de crime sozinha, Léo partiu para o cemitério no silêncio mais profundo, sob a luz fantasmagórica das luas minguantes.
***
O larápio não se dava bem com promessas, tampouco com responsabilidades — era irresponsável e admitia isso. Adorava sua liberdade e sentia que essas atribuições só o restringiam.
O juramento e a busca sem fim já haviam se tornado um estorvo psicológico. Ele queria resgatar o medalhão de sua mãe, mas tudo o que conseguia fazer era duvidar de sua própria capacidade. E se ele não conseguisse o colar de volta? Como Lena ficaria? Ele caminhava desnorteadamente rumo a seu destino, carregando o fardo de seu passado obscuro.