Karol

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Há uma pequena cruz de madeira fincada à beira da estrada, com a data da
morte dele inscrita.
Agus odiaria isso. Aposto que foi a mãe dele que a deixou aqui.
- Pode parar o carro?
O motorista desacelera e para o táxi.
Saio e vou até o local onde está fincada a cruz. Balanço-a de um lado para o outro até a terra ao redor ficar mais maleável, depois a retiro do chão.
Será que ele morreu exatamente aqui? Ou será que foi na pista?
Não prestei atenção aos detalhes durante as fases iniciais do processo.
Quando ouvi que ele tinha se arrastado para longe do  carro por vários metros, comecei a cantarolar para não ouvir mais nada que o promotor fosse dizer. Depois, para não me sujeitar aos detalhes se o caso fosse a julgamento, me declarei culpada.
Porque, tecnicamente, eu era.
Posso não tê-lo matado com minhas ações, mas certamente o matei com
minha falta de atitude.
Achei que você estivesse morto, Agus. Mas pessoas mortas não se arrastam.
Volto para o táxi com a cruz na mão. Ponho-a no banco de trás, ao meu lado, e fico esperando o motorista retornar à pista, mas ele não retorna.
Olho-o pelo espelho retrovisor, e ele está me encarando de sobrancelha
erguida.
- Roubar uma homenagem de beira de estrada deve atrair algum tipo de carma. Tem certeza de que quer levar isso aí?
Desvio o olhar e dou uma desculpa. -Tenho. Fui eu que a coloquei ali.
Ainda sinto seu olhar me encarando enquanto ele volta para a pista.

Meu novo apartamento fica a apenas três quilômetros daqui, mas na direção oposta de onde eu morava antes.
Não tenho carro, então decidi encontrar um lugar mais perto do centro desta vez para poder ir a pé até o trabalho, se é que vou conseguir um trabalho.
Com meu passado e minha falta de experiência, vai ser difícil. E, de acordo com o taxista, o carma que devo estar carregando neste exato momento também não vai ajudar.
Roubar a homenagem a Agus, pode até me trazer um carma, mas alguém poderia argumentar que deixar uma homenagem para um rapaz que
expressava verbalmente seu ódio por homenagens de beira de estrada também pode ter o mesmo efeito.
Foi por isso que pedi ao motorista que
fizesse um desvio por esta estrada secundária. Eu sabia que Claudia devia ter deixado alguma coisa no local do acidente, e senti que devia a Agus a
remoção disso.
- Vai pagar no dinheiro ou no cartão? pergunta o taxista.
Olho o taxímetro, tiro dinheiro e uns trocados da bolsa e lhe entrego depois que ele para. Então pego minha mala e a cruz de madeira que acabei de roubar, saio do táxi e caminho até o prédio.

Meu apartamento novo não fica em um condomínio. É só um prédio isolado com um estacionamento abandonado de um lado e uma loja de conveniências do outro. Uma janela do térreo está coberta por madeira de compensado.
Tem latas de cerveja em vários níveis de decomposição sujando a propriedade. Chuto uma delas para que não fique presa nas rodinhas da minha mala.
O lugar parece ainda pior do que no anúncio on-line, mas era mais ou
menos o que eu esperava.
A proprietária nem mesmo perguntou meu nome quando liguei para saber se tinha algum apartamento disponível.
Ela só disse: “Sempre temos. Traga dinheiro em espécie; estou no apartamento um.” Depois desligou.
Bato à porta do apartamento um, onde um gato me encara da janela.
Ele está tão parado que me pergunto se não é uma estátua, mas depois ele pisca
e se afasta de mansinho.
A porta se abre, e uma senhora baixinha me encara com uma aparência
ranzinza.
Está com bobes no cabelo e com uma mancha de batom que vai da boca até o nariz.
- Não quero comprar nada.
Encaro o batom manchado, percebendo a forma como ele se infiltra nas rugas ao redor da boca.
- Liguei na semana passada para saber do apartamento, a senhora disse que tinha um disponível.
A ficha cai no rosto de ameixa seca da senhora. Ela faz um hum enquanto me fita dos pés à cabeça.
- Não achava que você fosse assim.
Não sei como interpretar seu comentário.
Desço os olhos para minha calça jeans e minha camiseta enquanto ela se afasta da porta por alguns segundos. Ela volta com um nécessaire.
- 550 dólares por mês. Os aluguéis do primeiro e do último mês devem ser pagos hoje.
Conto o dinheiro e lhe entrego.
- Não tem contrato?
Ela dá uma risada, enfiando o dinheiro no nécessaire.
- Você vai ficar no apartamento seis. Ela aponta o dedo para o alto.
- Fica bem em cima do meu, então não faça barulho, porque eu durmo cedo.
- O que o aluguel inclui?
- Água e coleta de lixo, mas a conta de luz é por sua conta. A energia elétrica está ativa, você tem três dias para colocar a conta no seu nome. A taxa de energia custa 250 dólares.
Merda. Três dias para arranjar 250 dólares? Estou começando a questionar minha decisão de voltar tão rápido, mas, quando fui liberada da moradia provisória, eu só tinha duas escolhas: gastar todo o meu dinheiro tentando sobreviver naquela cidade ou me deslocar quinhentos quilômetros e gastar todo o meu dinheiro nesta aqui.
Prefiro ficar na cidade onde moram todas as pessoas que eram ligadas a Agus.
A mulher recua um passo, entrando no próprio apartamento.
- Seja bem-vinda ao Paradise Apartments. Depois que se acomodar, te
levo um gatinho. Imediatamente coloco uma mão em sua porta, impedindo-a de fechá-la.
- Espera aí. Como é? Um gatinho?
- É, um gatinho. Tipo um gato, só que menor.
Me afasto da porta como se de alguma maneira o gesto fosse me proteger do que ela acabou de dizer.
- Não, obrigada. Não quero nenhum gatinho.
- Tem gatinhos de sobra aqui.
- Não quero nenhum gatinho. Repito.
- Quem é que não gostaria de um gatinho?
- Eu.
Ela bufa, como se minha resposta fosse totalmente absurda.
- Vamos combinar o seguinte. Diz ela.
- Deixo a eletricidade do apartamento ativa por duas semanas se você pegar um gatinho. Que diabos de lugar é este?
- Tá bom. Diz ela, reagindo ao meu silêncio como se ele fosse uma espécie de tática de negociação.
- Um mês. Deixo a eletricidade ativa pelo mês inteiro se você ficar com um gatinho.
Ela entra no apartamento, mas deixa a porta entreaberta.
Não quero um gatinho de jeito nenhum, mas, em troca de não precisar pagar 250 dólares à companhia elétrica neste mês, eu toparia ficar com muitos gatinhos.
Ela reaparece com uma gatinha malhada, a pelagem preta e laranja, e a
põe nas minhas mãos.
- Tome aqui. Meu nome é Ruth, caso precise de alguma coisa, mas tente não precisar de nada.
Ela começa a fechar a porta outra vez.
- Espera. Pode me dizer onde tem um orelhão? Ela dá uma risadinha.
- Posso. Lá em 2005.
Então ela fecha a porta completamente.
A gatinha mia, mas não é um miado afetuoso. Parece mais um pedido de
ajuda.
- Pois é, eu te entendo. Murmuro.
Vou até a escada com minha mala e minha... gatinha. Talvez eu devesse
ter esperado mais alguns meses antes de voltar para cá.
Trabalhei até juntar pouco mais de dois mil dólares, mas gastei a maior parte disso com a mudança.
Deveria ter juntado mais.
E se eu não encontrar um emprego logo? E agora ainda tenho a responsabilidade de manter uma gatinha viva.
Minha vida acabou de se tornar dez vezes mais difícil do que era ontem.

Subo até o apartamento com a gatinha agarrada à minha camiseta.
Ponho a chave na fechadura e preciso usar as duas mãos para puxar a porta e fazer a chave girar. Quando abro a porta do meu novo apartamento, prendo a
respiração, com medo do cheiro que estou prestes a sentir. Acendo a luz e dou uma olhada ao redor, expirando lentamente. Não tem muito cheiro.
O que é bom e ruim ao mesmo tempo.
Tem um sofá na sala de estar, mas é praticamente só isso.
Uma sala de estar pequena, uma cozinha menor ainda, sem sala de jantar.
Sem quarto.
É uma quitinete com armário e com um banheiro tão pequeno que a privada
encosta na banheira.
O apartamento é uma merda.
Um muquifo de 45m2, mas, para mim, já é um progresso.
Depois de dividir uma cela de 10m2 com outra pessoa, de viver numa moradia provisória com mais seis pessoas, tenho um apartamento inteiro de 45m2 para chamar de meu.
Tenho 26 anos, e essa é a primeira vez que moro oficialmente sozinha em algum lugar... o que é, ao mesmo tempo, apavorante e libertador.
Não sei se vou conseguir pagar o aluguel daqui no fim do mês, mas vou tentar. Mesmo que isso signifique tentar arranjar emprego em todos os
estabelecimentos comerciais que aparecerem na minha frente.
Ter meu próprio apartamento vai me ajudar quando eu for me explicar para os Landry. Vai mostrar que agora sou independente.
Mesmo que essa independência seja difícil.
A gatinha quer descer, então a ponho no chão da sala.
Ela anda pelos cantos, chamando quem quer que ela tenha deixado lá embaixo. Sinto um aperto no peito quando a vejo procurar alguma saída nos cantos do
apartamento. Uma saída que a leve para sua casa. Para sua mãe e seus irmãos.
Ela parece um zangão ou algum tipo de fantasia de Halloween, com suas listras pretas e laranja.
- Que nome vamos te dar, hein?
Sei que é bem provável que ela passe alguns dias sem nome enquanto penso no assunto. Levo muito a sério a responsabilidade de dar nomes às coisas. Da última vez que estive encarregada de escolher o nome de alguém, foi a coisa que mais levei a sério na vida.
Talvez porque, durante todo o tempo que passei sentada na minha cela durante a gravidez, eu não tinha nada para fazer além de pensar em nomes de bebês.
Escolhi o nome April porque, assim que me soltaram, eu sabia que voltaria até aqui e faria tudo o que pudesse para encontrá-la. E cá estou eu.
April

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