Ruggero

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Estou estacionando a picape no beco atrás do bar quando percebo que ainda
tem esmalte nas unhas da minha mão direita.
Merda.
Esqueci que brinquei de salão de beleza com uma menina de quatro anos ontem à noite.
Pelo menos o roxo combina com o uniforme do trabalho.
Gaston está jogando os sacos de lixo na caçamba quando saio do carro.
Ele vê a sacola de presente na minha mão e deduz que é para ele, então estende o braço.
- Deixa eu adivinhar. Uma caneca de café? Ele dá uma olhada dentro da sacola.
É uma caneca de café. Sempre é.
Ele não agradece. Ele nunca agradece.
Não mencionamos a sobriedade que as canecas simbolizam, mas compro uma para ele todas as sextas.
É a nonagésima sexta caneca que lhe dou. Talvez eu devesse parar, pois o apartamento dele está entulhado delas,
mas já investi demais nessa história para desistir a essa altura do campeonato.
Ele está sóbrio há quase cem semanas, e já faz um tempo que estou guardando a centésima caneca, um marco. É uma do Denver Broncos, o time de que ele menos gosta.
Gaston gesticula na direção dos fundos do bar.
- Tem um casal lá dentro incomodando os outros clientes. É melhor ficar de olho neles. Que estranho.
Normalmente não precisamos lidar com pessoas descontroladas tão cedo assim. Não são nem 18h ainda.
- Onde eles estão sentados?
- Ao lado da jukebox. Seus olhos se voltam para a minha mão.
- Que unhas lindas, cara.
- Né? Ergo a mão e balanço os dedos.
- Para uma menina de quatro anos, ela mandou bem.
Abro a porta dos fundos do bar e me deparo com o som irritante da minha música preferida sendo assassinada por Ugly Kid Joe nos altofalantes.
Não é possível.
Passo pela cozinha, entro no bar e avisto os dois na mesma hora.
Estão encurvados sobre a jukebox.
Me aproximo depressa e vejo que a mulher está apertando os mesmos quatro números sem parar.
Olho a tela por cima dos ombros deles enquanto ambos riem como duas crianças travessas.
Eles puseram “Cat’s in the Cradle” para tocar 36 vezes seguidas.
Pigarreio.
- Vocês acham isso engraçado? Acham engraçado me obrigar a ouvir a mesma música pelas próximas seis horas?
Meu pai se vira ao ouvir minha voz.
- Ruggero!
Ele me puxa para um abraço.
Está com cheiro de cerveja e de óleo de
carro. E de limão, talvez? Eles estão bêbados?
Minha mãe se afasta da jukebox.
- Estamos tentando consertar. Não fomos nós que fizemos isso.
- É óbvio que não.
Puxo-a para abraçá-la.
Os dois nunca avisam quando vão me visitar. Eles simplesmente aparecem, ficam um, dois ou três dias e depois vão embora no trailer.
Mas isso de os dois chegarem bêbados é novidade. Olho por cima do ombro, e agora Gaston está atrás do balcão. Aponto para os meus pais.
- Foi você quem fez isso com eles, ou eles já chegaram assim? Gaston dá de ombros.
- Um pouco das duas coisas.
- Estamos comemorando nossas bodas. Diz minha mãe.
- Espero que não tenham dirigido até aqui.
- Não dirigimos. Diz meu pai.
- Nosso carro está com o trailer na
oficina para uma revisão de rotina, então viemos de Uber. Ele dá um tapinha na minha bochecha.
- A gente queria te ver, mas ficamos duashoras esperando você aparecer, e agora vamos embora, porque estamos
morrendo de fome.
- É por isso que é melhor vocês me avisarem antes de virem pra cá. Eu
tenho meus compromissos.
- Você se lembrou das nossas bodas? Pergunta meu pai.
- Esqueci. Desculpe.
- Bem que eu falei. Diz ele para minha mãe.
- Passa a grana, Anto.
Minha mãe põe a mão no bolso e lhe entrega uma nota de dez dólares.
Eles fazem apostas para tudo.
Minha vida amorosa. As datas
comemorativas que vou lembrar.
Todas as partidas de futebol americano
que já joguei. Mas tenho quase certeza de que eles estão apenas passando,
há muitos anos, a mesma nota de dez dólares um para o outro.
Meu pai ergue o copo vazio e o balança.
- Barman, traz mais uma aqui pra gente.
Pego o copo.
- Que tal água gelada?
Deixo os dois perto da jukebox e vou para trás do balcão.
Estou servindo água em dois copos quando uma garota entra no bar
parecendo um tanto perdida.
Ela dá uma olhada no local como se fosse sua primeira vez aqui, e, ao perceber um lugar vazio na outra ponta do balcão,
caminha diretamente até ele.
Encaro-a o tempo todo enquanto ela atravessa o bar.
Encaro-a tão concentrado que acabo acidentalmente enchendo demais os copos, fazendo água se esparramar por toda a parte. Pego um pano de prato e seco a bagunça que fiz.
Quando me viro para minha mãe, ela está olhando para a garota.
Depois para mim. Depois para a garota novamente.
Merda. A última coisa que eu quero é que ela tente me arranjar com uma cliente. Ela já adora dar uma de cupido quando está sóbria, então nem imagino o quanto essa sua tendência não deve piorar depois de alguns drinques.
Preciso tirar os dois daqui.
Levo os copos de água até eles e entrego meu cartão de crédito para minha mãe.
- Vocês dois deveriam ir jantar no Jake’s Steakhouse. É por minha conta.
Vão a pé, assim o efeito da bebida passa no caminho.
- Você é tão bonzinho. Ela põe a mão no peito dramaticamente e desvia o olhar para o meu pai.
- Bruno, nós o criamos tão bem. Vamos
comemorar isso com o cartão de crédito dele.
- Pois é, nós o criamos bem mesmo. Diz meu pai, concordando.
- Deveríamos ter mais filhos.
- Menopausa, querido. Lembra quando passei um ano inteiro te odiando?
Minha mãe pega a bolsa, e os dois levam consigo os copos de água ao dirigirem-se à saída.
- Já que ele vai pagar, vamos pedir filé de costela. Murmura meu pai enquanto ambos se afastam.
Dou um suspiro de alívio e volto ao balcão.
A garota está sentada em silêncio no canto, escrevendo algo em um caderno. Gaston não está atrás do balcão, então imagino que ninguém tenha anotado o pedido dela ainda.
Eu me voluntario alegremente como tributo.
- O que deseja? Pergunto a ela.
- Uma água e uma Coca Diet, por favor. Ela não me olha, então me afasto para trazer o pedido.
Ela ainda está escrevendo no caderno quando volto com as bebidas.
Tento dar uma olhada  no que ela está escrevendo, mas ela fecha o caderno e ergue os olhos.
- Obriga...
Ela para no meio do que imagino que seja uma tentativa de dizer obrigada. Murmura a sílaba da e põe o canudo na boca.
Ela parece nervosa.
Quero lhe fazer algumas perguntas, como qual é seu nome e de onde ela
é, mas ao longo dos anos como dono daqui fui aprendendo que perguntas
para pessoas sozinhas num bar se transformam rapidamente em conversas
impossíveis de conseguir cair fora.
No entanto, a maioria das pessoas que entra aqui não chama minha atenção como ela chamou. Gesticulo para seus dois copos e digo:
- Está esperando alguém?
Ela puxa os copos para perto de si.
- Não. Estou só com sede mesmo.
Ela desvia o olhar e se encosta no banco, aproximando-se do caderno e dedicando ao objeto plena concentração.
Entendo a indireta. Vou até a outra ponta do balcão para lhe dar privacidade.
Gaston volta da cozinha e aponta a cabeça na direção da garota.
- Quem é ela?
- Sei lá, mas não está usando aliança, então não faz seu tipo.
- Palhaço.

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