Karol

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Lina me colocou para trabalhar assim que terminei de assistir às três horas de vídeos de treinamento.
Fiquei nervosa no início, pois estava esperando acompanhar alguém no meu primeiro dia, mas Lina disse: “É só deixar as coisas pesadas embaixo e tratar o pão e os ovos como bebês que você vai se sair bem.”
Ela tinha razão.
Faz duas horas que estou empacotando compras e levando-as até os carros dos clientes, e até agora é apenas o que se esperaria de um trabalho comum que paga pouco.
No entanto, ninguém me alertou dos riscos ocupacionais no primeiro dia.
O risco ocupacional se chama Ruggero, e, embora eu não o tenha visto, acabo de avistar sua picape laranja horrorosa no estacionamento.
Minha pulsação acelera, porque não quero que ele crie um barraco.
Não o vejo desde que ele apareceu lá em casa no sábado à noite para conferir se
eu estava bem.
Acho que me comportei muito bem.
Ele parecia arrependido de ter me tratado como me tratou, mas agi com indiferença e me mantive tranquila,
embora sua visita certamente tenha me abalado.
Fiquei levemente esperançosa.
Se ele se sentiu mal pela maneira como
me tratou, talvez seja possível que ele acabe se compadecendo da minha
situação.
Tenho certeza de que a probabilidade disso é mínima, mas existe, ainda assim.
Talvez eu não devesse evitá-lo.
Quem sabe a minha presença não o faça
perceber que não sou o monstro que ele pensa que sou?
Volto para o mercado e guardo o carrinho na fila. Lina está atrás do
balcão do atendimento ao consumidor.
- Posso fazer um intervalo para ir ao banheiro?
- Não precisa pedir permissão para ir fazer xixi. Diz ela.
- Lembra como a gente se conheceu?
Eu finjo que vou fazer xixi a cada hora que passo aqui. É só assim que mantenho a sanidade.
Adoro ela.
Não preciso ir ao banheiro.
Só quero dar uma volta e ver se consigo avistar Ruggero. Parte de mim torce para que ele esteja aqui com April, mas sei que ele não está. Ele viu quando eu estava me candidatando a um emprego aqui, então provavelmente nunca mais vai trazer April ao mercado.
Acabo encontrando-o no corredor dos cereais. Estava apenas querendo espiá-lo e observá-lo enquanto ele faz compras, mas ele está na mesma extremidade do corredor quando apareço e me vê no mesmo instante em que o vejo.
Estamos a apenas um metro de distância. Ele está segurando uma caixa de Froot Loops.
Será que é para April?
- Você conseguiu o emprego. Diz ele, sem nenhum sinal de que se importa com o fato de que consegui o emprego ou de que isso o incomoda.
Tenho certeza de que, caso isso o incomodasse, ele teria ido fazer compras em outro lugar hoje. Ele sabia que eu estava tentando arranjar um emprego aqui.
Caso isso o incomode, ele vai ter que achar outro mercado, pois não vou a lugar nenhum. Não posso.
Ninguém mais quer me contratar.
Levanto o olhar da caixa de cereal em suas mãos e imediatamente me arrependo.
Hoje ele parece diferente.
Talvez sejam as lâmpadas fluorescentes, ou quem sabe seja o fato de que, quando estou em sua presença, tento não observá-lo tão de perto.
Mas aqui, no corredor dos cereais, todas as lâmpadas parecem iluminá-lo.
Odeio o fato de que ele fica mais bonito com esta iluminação.
Como isso é possível? Seus olhos estão mais simpáticos, sua boca está ainda mais convidativa, e não gosto de pensar coisas boas sobre o homem que me
arrancou da casa onde minha filha estava.
Deixo o corredor dos cereais com um novo nó na garganta.
Mudei de ideia: não quero mais ser boazinha com ele. Ele já passou cinco anos me julgando.
Não vou mudar a opinião que ele tem sobre mim no corredor de um mercado, e fico abalada demais em sua presença para conseguir lhe transmitir alguma impressão positiva.

Tento me programar para não estar disponível na hora em que ele vai pagar, mas, por desejo do carma, todos os outros empacotadores estão ocupados. Sou chamada até o caixa dele para empacotar suas compras, o que significa que vou ter de levá-las até sua picape, conversar com ele e ser simpática.
Não faço contato visual com ele, mas sinto que ele está me observando enquanto separo os itens nas sacolas.
Há algo de íntimo em saber o que cada pessoa da cidade compra para comer. Parece que quase dá para defini-las com base em suas compras.
Mulheres solteiras compram muitos alimentos saudáveis.
Homens solteiros compram muitos bifes e refeições congeladas.
Famílias extensas compram muita carne a granel, frutas e vegetais.
Ruggero compra refeições congeladas, bifes, molho inglês, Pringles, biscoitos em formato de bichinhos, uma caixa de Froot Loops, leite, achocolatado e mais um monte de Gatorade. Com base nas escolhas dele, concluo que ele é um homem solteiro que passa muito tempo com minha filha.
Os últimos produtos que o caixa passa são três latas de SpaghettiOs.
Invejo o fato de ele saber do que minha filha gosta e demonstro isso jogando ruidosamente as latas na sacola e depois no carrinho.
O caixa me olha de soslaio enquanto Ruggero paga pelas compras.
Após pegar a nota fiscal, ele a dobra e a guarda na carteira enquanto se aproxima do carrinho.
- Pode deixar que eu levo.
- Eu preciso levar. Digo secamente.
- É a norma do mercado.
Ele assente e indica o caminho até sua picape.
Não gosto de perceber que ainda o considero atraente.
Tento olhar para qualquer lugar, menos para ele, enquanto andamos pelo estacionamento.
Quando eu estava no seu bar na outra noite, antes de saber que ele era o dono, não pude deixar de notar a diversidade entre seus funcionários, o que me fez pensar bem do dono, quem quer que fosse.
Os outros dois barmen, Razi e Gaston, são negros. Uma das garçonetes é latina.
Gosto de saber que ele faz parte da vida da minha filha. Quero que ela seja criada por pessoas boas, e, embora eu mal o conheça, até agora Ruggero me parece um ser humano decente.
Quando chegamos à picape, Ruggero pega os Gatorades e os guarda na caçamba enquanto coloco o restante das compras no banco de trás, no lado oposto de onde fica o assento de elevação de April. Tem um elástico de cabelo branco e cor-de-rosa no chão.
Quando termino de descarregar as sacolas, encaro o elástico por alguns segundos e depois estendo o braço
para ele.
Tem um fio de cabelo castanho enroscado nele, e o puxo até ele se soltar.
Tem uns vinte centímetros de comprimento e é exatamente da mesma cor que o meu.
Ela tem o meu cabelo.
Sinto Ruggero se aproximar por trás, mas não ligo. Quero subir neste banco e ficar aqui com o assento de elevação e o elástico dela e quero ver se consigo encontrar algum outro resquício que me dê alguma pista sobre a aparência e o tipo de vida que ela tem.
Eu me viro, ainda encarando o elástico.
- Ela é parecida comigo?
Olho para ele, e suas sobrancelhas estão mais franzidas enquanto ele me encara. Seu braço esquerdo está apoiado em cima da picape, e me sinto presa entre ele, a porta e o carrinho.
- É, sim.
Ele não diz de que maneira ela se parece comigo. São os olhos? A boca? O cabelo? Ela inteira? Quero perguntar se nossas personalidades são semelhantes, mas ele não sabe nada sobre mim.
- Há quanto tempo você a conhece?
Ele cruza os braços por cima do peito e desce os olhos em direção aos pés, como se não se sentisse à vontade respondendo a essas perguntas.
- Desde que eles a trouxeram para casa.
Quase dá para escutar a onda de inveja que percorre o meu corpo.
Inspiro tremulamente pela boca e contenho as lágrimas, fazendo outra
pergunta:
- Como ela é?
A pergunta o faz dar um suspiro pesado.
- Karol. Tudo que ele diz é o meu nome, mas é o suficiente para que eu entenda que ele não vai mais responder às minhas perguntas.
Ele desvia os olhos de mim e dá uma conferida no estacionamento.
- Você vem a pé para o trabalho?
Uma conveniente mudança de assunto.
- Venho.
Agora ele está olhando para o céu.
- Parece que vai cair uma tempestade hoje à tarde.
- Que ótimo.
- Você pode chamar um Uber. Ele volta a me encarar.
- Existia Uber antes de você... Ele não termina a frase.
- Antes de eu ser presa? Concluo, revirando os olhos.
- Sim, existia Uber. Mas não tenho celular, então não tenho o aplicativo.
- Você não tem um celular?
- Eu tinha, mas o deixei cair no mês passado e só vou conseguir comprar um novo quando receber meu salário.
Alguém usa a chave de longe para destrancar um carro a uma vaga de
distância da gente.
Olho ao redor e vejo Lady Diana indo até o carro com um casal mais velho e um carrinho cheio de compras.
Não estamos atrapalhando o caminho deles, mas aproveito a desculpa para fechar a porta de Ruggero.
Lady Diana o vê enquanto abre o porta-malas. Ela pega a primeira sacola
e murmura: - Babaca.
A reação dela me faz sorrir.
Olho para Ruggero, e acho que talvez até ele esteja sorrindo. Não gosto do fato de que ele não parece um babaca.
Seria muito mais fácil odiá-lo se ele fosse mesmo um babaca.
- Vou ficar com o elástico. Digo enquanto viro o carrinho.
Quero lhe dizer que, se ele ainda vai insistir em fazer compras aqui, deveria trazer minha filha da próxima vez. Quando estou em sua presença, contudo, não consigo decidir se devo ser educada porque ele é a única coisa que me liga à minha filha ou se devo ser maldosa porque ele é uma das coisas que me impede de ver minha filha.
Não dizer nada quando quero dizer tudo talvez seja a melhor opção no momento. Dou mais uma olhada nele antes de entrar no mercado, e ele ainda está encostado na picape e me encarando.
Entro e devolvo o carrinho à fila.
Depois prendo meu cabelo com o elástico de April e fico com ele durante o restante do expediente.

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