Karol

81 12 2
                                    


Estou sentada num colchão inflável com minha gatinha sem nome, refletindo sobre todas as razões pelas quais não devo retornar àquele bar.
Não voltei para esta cidade para conhecer cara nenhum.
Nem mesmo caras tão bonitos quanto aquele barman. Estou aqui pela minha filha, só isso.
Amanhã vai ser um dia importante. Amanhã preciso me sentir hercúlea, mas o barman, sem querer, fez com que eu me sentisse fraca quando levou minha taça de vinho. Não sei o que ele viu na minha expressão que o fez tirar o vinho de mim. Eu não ia beber. Pedi apenas para sentir um certo controle ao não tomá-lo. Queria olhá-lo e cheirá-lo e então deixá-lo de lado me sentindo mais forte do que quando me sentei.
Agora estou me sentindo transtornada porque ele viu a forma como olhei
para o vinho mais cedo, e a maneira como ele levou embora a taça me faz
pensar que ele acha que estou atualmente enfrentando algum problema com álcool.
Não tenho. Há anos não tomo nenhuma bebida alcoólica, porque uma noite de bebedeira somada a uma tragédia arruinaram os últimos cinco anos
da minha vida, e os últimos cinco anos da minha vida me trouxeram de volta a esta cidade, e esta cidade me deixa angustiada, e a única coisa capaz de me acalmar é fazer coisas que me dão a sensação de que ainda estou no controle da minha vida e das minhas decisões.
Era por isso que eu queria rejeitar o vinho, cacete.
Agora não vou dormir bem.
Não tenho nenhum motivo para me sentir realizada, pois ele fez com que eu me sentisse o completo oposto disso. Se eu quero dormir bem hoje, preciso rejeitar alguma outra coisa que eu
queira.
Ou alguém.
Faz muito, muito tempo que não desejo ninguém... desde que conheci Agus.
Mas o barman era meio que gato e tinha um sorriso lindo e faz um café delicioso e já me convidou para voltar ao bar, então vai ser fácil ir até lá e rejeitá-lo.
Então vou dormir bem e me sentir preparada para acordar e enfrentar o dia mais importante da minha vida.

Queria poder levar minha gatinha nova. Sinto como se eu precisasse de uma parceira, mas ela está dormindo no travesseiro novo que comprei na loja mais cedo.
Não comprei muita coisa.
O colchão inflável, dois travesseiros e lençóis, umas bolachas, queijo e um pouco de ração e areia para gato. Decidi que vou viver dois dias de cada vez nesta cidade. Antes de saber como vai ser o
dia de amanhã, não adianta desperdiçar o dinheiro que poupei ao longo de seis meses de trabalho.
Já estou com pouco, e é por isso que decido não chamar um táxi.

Saio do apartamento para ir ao bar a pé, mas desta vez não levo minha bolsa nem meu caderno. Preciso apenas da minha carteira de motorista e da chave do apartamento. É uma caminhada de 2,5km da casa até o bar, mas o tempo está ameno e o percurso é bem iluminado.
Fico ligeiramente preocupada com a possibilidade de alguém me reconhecer no bar, ou até mesmo no meio do trajeto, mas estou completamente diferente de como eu era cinco anos atrás. Eu costumava me importar mais com minha aparência, mas cinco anos na prisão me fizeram ligar menos para tintas e apliques de cabelo, cílios postiços e unhas artificiais.
Não morei aqui por tempo o suficiente para fazer muitas amizades além de Agus, então duvido que a maior parte das pessoas saiba quem sou.
Tenho certeza de que muitas delas já ouviram falar de mim, mas é difícil ser
reconhecida quando ninguém nem mesmo sente sua falta.
Talvez Diego e Claudia me reconhecessem caso me vissem, mas só os encontrei uma vez antes de ir para a prisão.
Prisão.
Nunca vou me acostumar com essa palavra. É tão difícil de dizer em voz alta. Quando as letras são escritas uma a uma no papel, elas não parecem tão árduas; mas dizer a palavra em voz alta “prisão” é pesado pra cacete.
Quando penso no lugar onde passei os últimos cinco anos, não gosto de chamá-lo mentalmente de prisão. Gostaria de pensar no período em que
estive lá como quando eu estava fora e não entrar em maiores detalhes.
Nunca vou me acostumar a dizer “quando eu estava na prisão”.
Vou ter que dizer isso esta semana, quando estiver procurando emprego.
Vão me perguntar: “Já foi condenada por algum crime?” Vou ter que responder: “Sim, passei cinco anos presa por homicídio culposo.”
E então a pessoa vai me contratar ou não. Provavelmente não.
As mulheres são tratadas de outro jeito, mesmo atrás das grades.
Quando elas dizem que já foram presas, as pessoas pensam ralé, vadia, drogada,
ladra. Mas quando os homens dizem que já foram presos, as pessoas acrescentam medalhas de honra aos pensamentos negativos, como ralé, mas durão, drogado, mas casca-grossa, ladrão, mas impressionante.
O estigma ainda existe para os homens, mas as mulheres nunca saem de lá com o estigma e as medalhas de honra.
Segundo o relógio do tribunal, chego ao centro às 23h30.
Espero que o barman ainda esteja lá, apesar do meu atraso de meia hora.
Não reparei no nome do bar mais cedo, provavelmente porque ainda estava claro e porque fiquei chocada quando vi que o lugar não era mais uma livraria, mas tem um letreiro em néon acima da porta que diz PASQUARELLI'S
Hesito antes de entrar novamente. Minha volta é meio que um sinal para
aquele cara, e não sei ao certo se quero que ele o receba.
No entanto, a alternativa é retornar àquele apartamento e ficar sozinha com meus pensamentos.
E nos últimos cinco anos já passei tempo demais sozinha com meus pensamentos. Estou ansiando por pessoas e barulho e todas as coisas que fui impedida de viver, e meu apartamento me lembra um pouco uma prisão, tem solidão e silêncio demais lá dentro.
Abro a porta do bar.
Está mais barulhento e enfumaçado e, de alguma maneira, mais escuro do que antes. Não tem nenhum lugar vazio, então passo entre as pessoas, encontro o banheiro, espero no corredor, espero do
lado de fora, passo entre as pessoas de novo. Finalmente uma mesa fica livre. Atravesso o bar e me sento sozinha.

Fico observando o barman se movimentar atrás do balcão.
Gosto do quanto ele parece tranquilo. Dois caras começam a discutir, mas ele não liga, apenas faz um gesto em direção à porta e os dois vão embora.
Ele faz muito isso de apontar para as coisas, e as pessoas simplesmente fazem
aquilo que ele aponta para elas fazerem.
Ele aponta para dois clientes enquanto olha para o outro barman. Este último se aproxima dos clientes e fecha a conta deles.
Ele aponta para uma prateleira vazia, e uma das garçonetes assente, então dentro de alguns minutos a prateleira está cheia de novo.
Ele aponta para o chão, e o outro barman desaparece pelas portas duplas e reaparece com um esfregão para limpar algo que tinha sido derramado.
Ele aponta para um gancho na parede, e outra garçonete, grávida, articula um “obrigada” com a boca, pendura o avental no gancho e vai para casa.
Ele aponta e as pessoas fazem, e então é hora da saideira e depois, finalmente, é hora de fechar. As pessoas saem aos poucos. Ninguém entra.
Ele não olhou para mim. Nem uma vez.
Questiono minha decisão de estar aqui. Ele parece ocupado, e talvez eu tenha interpretado errado sua intenção. Quando ele me disse para voltar,
simplesmente presumi que ele tivesse algum motivo, mas talvez ele diga isso a todos os clientes.
Me levanto, achando que talvez eu também devesse ir embora, mas, ao ver que me levantei, ele aponta na minha direção.
Faz um movimento simples com o dedo, indicando para eu me sentar de novo, então me sento.
Fico aliviada ao perceber que minha intuição estava correta, mas, quanto
mais o bar se esvazia, mais nervosa fico. Ele supõe que sou uma mulher feita, mas mal me sinto uma adulta.
Sou uma adolescente de 26 anos,
inexperiente, começando do zero.
Não sei se estou aqui pelos motivos certos. Achei que simplesmente chegaria, daria em cima dele e iria embora, mas o cara é mais tentador do que qualquer café metido a besta. Vim aqui para rejeitá-lo, mas não fazia a mínima ideia de que ele passaria a noite toda apontando para várias direções, nem fazia ideia de que ele apontaria para mim. Não tinha ideia de que apontar podia ser tão sexy.
Eu me pergunto se teria achado isso sexy cinco anos atrás ou se agora ficou ridiculamente fácil me agradar.

Meu Recomeço Onde histórias criam vida. Descubra agora