Karol

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Às vezes, penso em sequestrar April.
Não sei por que não chego a fazer isso. Até parece que a vida que estou vivendo atualmente poderia ser pior.
Pelo menos quando eu estava presa havia um motivo que me impedia de ver
minha filha.
Mas agora o único motivo são as pessoas que a estão criando. E o ódio que eu sinto por elas machuca.
Não quero odiá-las.
Na prisão era mais difícil culpá-las, pois me sentia muito grata por saber que April tinha pessoas cuidando dela.
Aqui, no entanto, neste apartamento solitário, é difícil não pensar no quanto seria ótimo simplesmente pegar April e fugir. Mesmo que me capturassem alguns dias depois.
Eu poderia lhe dar tudo enquanto estivesse com ela.
Sorvete, presentes, talvez uma viagem para a Disney. Teríamos uma celebração extravagante de uma semana antes de eu me entregar, e ela se lembraria disso para sempre.
Ela se lembraria de mim.
E então, quando eu terminasse de cumprir a pena pelo sequestro, ela já
seria adulta. E provavelmente me perdoaria, porque quem não valorizaria
uma mãe que correu o risco de voltar para a prisão só para passar uma semana boa com a filha?
A única coisa que me impede de sequestrá-la é a possibilidade de que Os pais de Agus mudem de ideia um dia.
E se eles mudarem de opinião e eu puder conhecer April ser precisar infringir a lei? E também tem o fato de que ela nem me conhece. Ela nem sequer me ama.
Eu estaria tirando a menina dos únicos pais que ela conhece, e, embora isso me pareça tentador, é bem provável que fosse acabar sendo uma experiência apavorante para April.
Não quero tomar nenhuma decisão egoísta. Quero ser um bom exemplo para minha filha, porque um dia ela vai descobrir quem sou.
Vai descobrir que eu queria participar da vida dela. Talvez ela só possa decidir por conta própria se quer ter ou não uma relação comigo daqui a treze anos, e é só por isso que vou viver os próximos treze anos de uma maneira que espero que a
deixe orgulhosa.
Me aconchego com Ivy e tento pegar no sono, mas não consigo.
São tantos pensamentos rodopiando na minha cabeça, e nenhum deles jamais se
aquieta. Sofro de insônia desde a noite em que Agus morreu.
Passo as noites acordada, pensando em April e em Agus.
E agora no meio disso tudo também penso em Ruggero.
Uma parte de mim ainda está se mordendo de raiva por ele ter me
impedido em frente à casa de Diego e Claudia no último fim de semana.
Mas outra parte se sente esperançosa quando estou em sua presença.
Ele não parece me odiar.
Sim, ele se arrepende de ter me beijado, mas não ligo.
Nem sei por que lhe fiz essa pergunta.
Só queria saber se ele se arrepende
porque era o melhor amigo de Agus ou por conta do que fiz com Agus.
Provavelmente as duas coisas.
Quero que Ruggero veja o lado de mim que Agustin via, pois assim talvez eu teria alguém do meu lado.
É solitário pra cacete quando suas únicas amigas são uma adolescente e uma gatinha.
Eu devia ter me esforçado mais para agradar à mãe de Agus enquanto ele estava vivo. Fico me perguntando se isso não teria feito alguma diferença.

A noite em que conheci os pais dele deve ter sido a mais estranha da minha vida.
Eu já tinha visto famílias como a deles na televisão, mas nunca pessoalmente.
Para ser bem honesta, eu não sabia nem que elas existiam: pais que se davam bem e que pareciam gostar um do outro.
Eles foram nos encontrar na frente da casa. Fazia três semanas que Agus não os visitava, e parecia que eles não o viam há anos. Eles o abraçaram.
Não um abraço de oi, mas um abraço de que saudade. Um abraço de você é o melhor filho do mundo.
Eles também me abraçaram, mas foi diferente. Foi um abraço rápido de oi, é um prazer conhecê-la.
Quando entramos na casa, Claudia disse que precisava terminar de preparar o jantar, e eu sabia que devia ter me oferecido para ajudá-la, mas não entendia nada de cozinha e fiquei com medo de que ela percebesse minha falta de experiência.
Então, fiquei grudada em Agus como se
estivesse colada a ele.
Estava me sentindo nervosa e deslocada, e ele era o lar que eu tinha.
Eles até rezaram.
Agustín foi quem conduziu a oração.
Foi muito atordoante para mim: eu estava sentada à mesa para jantar, ouvindo um rapaz agradecer a Deus por sua refeição, por sua família e por mim. Foi surreal demais para que eu conseguisse manter os olhos fechados. Queria assimilar tudo aquilo, ver outras pessoas rezando. Queria encarar aquela
família, porque era difícil aceitar a ideia de que, caso eu me casasse com Agus ela seria minha. Eu teria aqueles sogros, teria ajudado a preparar aquela refeição e teria aprendido a agradecer a Deus pela comida e por Agus.
Eu queria aquilo. Ansiava por aquilo.
Normalidade.
Algo que eu desconhecia totalmente.
Vi quando Claudia abriu os olhos no fim da oração e percebeu que eu estava observando tudo.
Fechei os olhos na mesma hora, mas Agus já tinha dito “amém” e todos pegaram seus garfos.
Naquele momento Claudia já tinha formado uma opinião sobre mim, e eu era jovem demais e estava muito assustada para saber como mudá-la.
Parecia que eles estavam com dificuldade de me olhar durante o jantar.
Eu não devia ter usado aquela camiseta. Era decotada, a preferida de Agustin.
Passei a refeição inteira curvada sobre o prato, com vergonha de mim mesma e de todas as coisas que eu não era.

Depois do jantar, Agus e eu fomos nos sentar na varanda dos fundos.
Seus pais foram dormir, e assim que a luz do quarto se apagou, suspirei de
alívio. Parecia que eu estava sendo avaliada.
- Segura aqui. Disse Agus, me entregando seu cigarro.
- Preciso ir mijar.
Ele costumava fumar de vez em quando. Eu não me incomodava, mas não fumava. Estava escuro lá fora, e ele foi até a lateral da casa.
Eu estava de pé na varanda, encostada no balaústre, quando a mãe dele apareceu na porta de trás.
Me empertiguei e tentei esconder o cigarro atrás de mim, mas ela já tinha visto. Ela foi embora e voltou um instante depois com um copo vermelho descartável.
- Use para as cinzas. Disse ela, entregando-o para mim pela porta dos
fundos.
- Não temos cinzeiro aqui. Nenhum de nós fuma. Fiquei morta de vergonha, mas tudo que consegui dizer foi “obrigada”, e depois peguei o copo.
Ela fechou a porta bem na hora em que Agus voltou para pegar o cigarro.
- Sua mãe me odeia. Falei,entregando-lhe o cigarro e o copo.
- Não odeia, não. Ele me deu um beijo na testa.
- Um dia, vocês duas vão ser melhores amigas. Ele deu um último trago no cigarro e depois entrei na casa atrás dele.
Subimos a escada com ele me carregando nas costas, mas, ao ver todas
as fotos na parede, obriguei-o a parar na frente de cada uma para que eu pudesse vê-las. Eles estavam tão felizes.
A maneira como sua mãe o olhava nas fotos é a mesma maneira como o olhava naquele momento, com ele já sendo um adulto.
- Que criança é tão fofa assim, hein? Perguntei.
- Eles deviam ter tido mais umas três cópias suas.
- Eles tentaram. Respondeu ele.
- Pelo jeito, fui um milagre. Se não eles provavelmente teriam tido sete ou oito filhos. Fiquei triste por Claudia ao ouvir isso.
Chegamos ao quarto dele, e Agus me soltou sobre a cama. Ele disse:
- Você nunca fala sobre a sua família.
- Não tenho família.
- E seus pais?
- Meu pai está... em algum lugar. Ele cansou de pagar pensão e se mandou. Minha mãe e eu não nos damos bem.
Faz uns anos que não nos falamos.
- Por quê?
- Não somos compatíveis, só isso.
- Como assim?
Agustín se esparramou ao meu lado na cama, parecia genuinamente curioso a respeito da minha vida, e eu queria lhe contar a verdade, mas ao mesmo tempo não queria assustá-lo. Ele tinha crescido em um lar tão normal que eu não sabia o que ele iria pensar de eu ter vivido uma
experiência tão diferente.
- Eu ficava muito tempo sozinha. Falei.  -Ela sempre fazia questão de deixar comida, mas era negligente a ponto de eu ter sido mandada duas vezes para lares adotivos. Só que, nas duas vezes, acabaram me devolvendo para ela.
Tipo, ela era uma mãe ruim, mas não ruim o bastante. Acho que, depois de crescer e ver outras famílias, comecei a perceber que ela não era uma boa mãe. Ou nem mesmo uma boa pessoa.
Passou a ser muito difícil conviver com ela, era como se ela me considerasse uma concorrente, e não alguém que estivesse jogando no mesmo time. Era exaustivo. Depois que me mudei, a gente manteve contato por um tempo, mas depois ela
simplesmente parou de ligar.
E eu também. Agora, faz dois anos que não nos falamos.
Olhei para Agus, que estava com a expressão mais triste que eu já havia visto. Ele não disse nada. Apenas afastou meu cabelo do rosto e ficou em silêncio. -Como foi ter uma família boa? Perguntei.
- Acho que só agora percebi o quanto foi bom. Respondeu ele.
- Pois é. Você ama seus pais. E esta casa. Dá para perceber. Ele sorriu de um jeito suave.
- Não sei se consigo explicar, mas é como se aqui... eu pudesse ser a versão mais autêntica e real de mim mesmo.
Posso chorar. Posso ficar de mau humor, triste ou feliz. Qualquer um desses humores é aceito aqui. Não sinto isso em nenhum outro lugar.
A maneira como ele falou me deixou triste por eu nunca ter tido aquilo.
- Não sei como é essa sensação. Respondi.
Agus se inclinou e beijou a minha mão.
- Eu vou te dar isso. Disse ele.
- Um dia, vamos ter uma casa. E vou te deixar escolher tudo. Você pode pintar como quiser. Pode trancar a porta e só deixar entrar quem você bem entender. Vai ser o lugar mais confortável em que você morou na vida. Dei um sorriso.
- Parece o paraíso.
Então ele me beijou. Fez amor comigo.
E, por mais que eu tenha tentado não fazer barulho, a casa estava completamente silenciosa.
Na manhã seguinte, quando estávamos indo embora, a mãe de Agustin não
conseguiu nem me olhar nos olhos.
O constrangimento dela se infiltrou no meu corpo, e a partir daquele momento tive a certeza de que ela não gostava de mim.
Pressionei a testa no vidro da janela do passageiro quando estávamos no carro de Agustin, saindo da casa.
- Que vergonha. Acho que sua mãe ouviu a gente ontem à noite. Viu como ela estava tensa?
- É muito desagradável para ela. Respondeu Agus.
- Ela é minha mãe, não consegue me imaginar transando com nenhuma menina; não tem nada a ver com você em particular.
Me encostei no banco e suspirei.
- Gostei do seu pai.
Agus riu.
- Você também vai adorar minha mãe. Da próxima vez que a gente vier, faço questão de transar com você antes de chegarmos, assim ela pode fingir que eu não faço essas coisas.
- E talvez também devesse parar de fumar. Agus segurou minha mão.
- Posso parar. Da próxima vez, ela vai gostar tanto de você que vai ficar falando de casamento e netos.
- Tá. Falei, melancolicamente.
Talvez. Mas eu duvidava.
Parece mais que garotas como eu não se encaixavam em nenhuma família

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