Karol

74 9 1
                                    


Querido Agus,

Seu carro era o meu lugar preferido.
Não sei se cheguei a te dizer isso.
Era o único lugar onde a gente conseguia ficar realmente a sós.
Eu ansiava pelos dias em que nossos horários coincidiam e você ia me buscar no trabalho. Eu entrava no seu carro e era como se eu sentisse todo o conforto acolhedor de um lar. Você sempre tinha um refrigerante para mim, e, nos dias em que sabia que eu ainda não tinha jantado, deixava uma porção pequena de batata frita do McDonald’s no porta-copos, porque sabia que eram as minhas preferidas.
Você era um doce.
Sempre fazia gentilezas por mim.
Eram pequenos gestos aqui e ali, gestos em que a maioria das pessoas não pensa. Você era mais do que eu merecia, embora não concordasse com isso.
Já pensei tantas vezes sobre o dia em que você morreu que, uma vez, anotei todos os segundos daquele dia.
É óbvio que, em boa parte, era uma estimativa. Não sei se realmente passei um minuto e meio escovando os dentes naquela manhã. Ou se o intervalo que fiz no trabalho realmente durou quinze minutos e zero segundo.
Ou se a gente realmente passou cinquenta e sete minutos na festa a que fomos naquela noite.
Tenho certeza de que meus cálculos estão errados por alguns minutos aqui e ali, mas, na maior parte do tempo, consigo narrar tudo o que aconteceu naquele dia. Até mesmo as coisas que eu preferia esquecer.
Um colega seu da universidade ia dar uma festa, e você tinha dividido apartamento com ele no primeiro ano letivo e disse que devia dar uma passada lá por causa dele.
Fiquei chateada por ter de ir à festa, mas, pensando bem, acho que foi uma boa ideia você ter visto a maioria dos seus amigos naquela noite. Sei que isso foi
importante para eles depois da sua morte.
Apesar de ter ido, você não curtia mais aquilo e eu sabia que você não queria estar lá. Você tinha deixado as festas de lado e estava começando a se concentrar nos aspectos mais importantes da vida.
Tinha acabado de se formar e passava seu tempo livre ou estudando ou comigo.
Eu sabia que a gente não ia demorar, então achei uma poltrona num canto da sala de estar e fiquei sentada enquanto você falava com o pessoal.
Não sei se você percebeu, mas fiquei te observando durante todos os 57 minutos que passamos lá. Você era tão magnético. Os olhos das pessoas se alegravam ao te ver. Grupos se formavam ao seu redor, e, ao ver alguém que ainda não tinha
cumprimentado, você tinha a maior reação e fazia a pessoa se sentir como o centro da festa.
Não sei se isso era algo que você praticava, mas tenho a sensação de que você nem sequer sabia que tinha esse tipo de poder: o poder de fazer os outros se sentirem valorizados e importantes.
Mais ou menos no minuto 56, você me viu sentada no canto sorrindo para você. Aproximou-se de mim, ignorando todos ao redor, e de repente eu era o foco de toda a sua atenção.
Você me fixou com seu olhar, e eu sabia que era valorizada. Que era importante. Você se sentou do meu lado na poltrona, beijou meu pescoço e sussurrou no meu ouvido:- Me desculpe por ter te deixado só. Você não tinha me deixado só.
Eu passara todo aquele tempo com você.
- Quer ir agora? Você perguntou.
- Não se você estiver se divertindo. Você está se divertindo? Dei de ombros. Consegui pensar em muitas outras coisas mais divertidas do que a festa.
Pelo sorriso que se abriu no seu rosto,
percebi que você achava o mesmo.
- Quer ir para o lago?
Fiz que sim, pois aquelas eram minhas três coisas preferidas: aquele lago. Seu carro. Você.
Você roubou uma caixa com doze cervejas, nós saímos de fininho e fomos de carro até o lago.
A gente tinha um lugar preferido para onde íamos em algumas noites.
O caminho era por uma estrada secundária, de cascalho, e você disse que a conhecia porque acampava lá com seus amigos. Não era longe de onde eu dividia apartamento, então às vezes você chegava no meio da noite, a gente ia para lá e transava no cais, ou dentro da água, ou no seu carro. De vez em quando, a gente ficava para ver o sol nascer.
Naquela noite em específico, estávamos com a cerveja que você tinha pegado na festa e um resto de comestíveis de maconha que você comprara de um amigo na semana anterior.
Deixamos a música alta e fomos nos agarrar dentro da água. Não transamos naquela noite.
Às vezes a gente só se agarrava, e eu gostava muito dessa sua característica, pois sempre odiei o fato de que, nos namoros, o casal para de apenas se agarrar quando o sexo começa a fazer parte da rotina.
Mas, com você, a pegação sempre era tão especial quanto o sexo.
Você me beijou na água como se fosse a última vez que fosse me beijar na vida. Fico me perguntando se não sentiu alguma espécie de receio ou premonição e se não foi por isso que me beijou daquela maneira. Ou vai ver eu me lembro tão bem daquele beijo só porque foi o nosso último.
Saímos da água, e estávamos deitados nus no cais sob o luar, o mundo girando acima de nossas cabeças.
- Quero bolo de carne. Você disse.
Dei uma risada, pois era algo tão aleatório de se dizer.
- Bolo de carne? Você sorriu e respondeu: - Isso. Não seria uma boa? Bolo de carne e purê de batata.
Você se sentou no cais e me entregou minha camiseta seca.
- Vamos lá na lanchonete.
Você tinha bebido mais do que eu, então me pediu para dirigir.
Não era nosso estilo beber e dirigir, mas acho que estávamos nos sentindo invencíveis sob aquele luar.
Éramos jovens e estávamos apaixonados, e é óbvio que ninguém morre quando está no momento mais feliz da vida.
Também estávamos chapados, então nossas decisões estavam um pouco mais comprometidas naquela noite, mas, por algum motivo, você me pediu para dirigir.
E, por algum motivo, eu não lhe disse que não deveria dirigir.
 

Meu Recomeço Onde histórias criam vida. Descubra agora