Ruggero

70 11 1
                                    


Hoje Diego e eu começamos a montar o playground no meu quintal.
April faz aniversário somente daqui a algumas semanas, mas pensamos em
montar antes da festa para que ela e os amiguinhos tivessem onde brincar.
O plano pareceu viável, mas nenhum de nós sabia que a montagem de um playground se assemelhava tanto à montagem de uma casa inteira.
Tem peças por todo canto, e, sem o manual de instruções, Diego acabou
murmurando porra pelo menos três vezes.
Ele raramente usa essa palavra.
Até agora, evitamos falar sobre Karol.
Ele não a mencionou, então fiz o mesmo, mas sei que Cláudia e ele não conseguem pensar em outra coisa desde que ela apareceu na nossa rua ontem.
Mas percebo que o silêncio sobre o assunto está prestes a acabar, pois ele
para de trabalhar e diz:
- Bem...
É a palavra que Diego sempre usa quando vai iniciar uma conversa que
não está a fim de ter ou quando está prestes a dizer algo que sabe que não
deveria dizer.
Percebi isso quando ainda era adolescente. Ele entrava no quarto de Agus para avisar que estava na hora de eu ir embora, mas nunca dizia o que queria dizer, dava apenas alguma indireta. Ele encostava na porta e dizia: “Bem... acho que vocês dois têm aula amanhã.” Diego se senta numa das cadeiras do meu quintal e deixa as ferramentas na mesa.
- Está calmo por aqui hoje. Diz ele.
Aprendi a decifrar as coisas que ele não diz. Sei que está se referindo ao fato de Karol não ter voltado.
- Como Claudia está?
- Nervosa. Diz ele.
- Conversamos com nosso advogado ontem à noite. Ele nos garantiu que não tem nada que ela possa fazer juridicamente a esta altura. Mas acho que Claudia se preocupa mais com a ideia de ela fazer alguma idiotice, como pegar April no campo de beisebol quando ninguém estiver olhando.
- Karol não faria isso.
Diego dá uma risada sem vestígios de humor.
- Nenhum de nós a conhece, Ruggero. Não sabemos do que ela é capaz.
Conheço-a mais do que ele imagina, mas jamais admitiria isso.
No entanto, Diego talvez tenha razão.
Sei como é beijá-la, mas não faço a mínima ideia do ser humano que ela é.
Ela parece ter boas intenções, mas tenho certeza de que Agus achava a mesma coisa antes que ela o abandonasse no momento em que ele mais precisava.
Minha lealdade mais parece um ioiô. Num momento, me sinto péssimo por Diego e Claudia
No outro, me sinto péssimo por Karol. Tem que haver algum meio-termo que todos aceitem sem que April acabe sofrendo.
Tomo um gole de água para preencher o silêncio e depois pigarreio.
- Não quer nem saber o que ela quer? E se ela não quiser tentar ficar com April? Se só quiser conhecê-la?
- Isso não importa para mim. Diz Diego abruptamente.
- O quê?
- O que importa para mim é o nosso sofrimento. Não existe nenhuma maneira de Karol Sevilla participar das nossas vidas, ou da vida de April, sem afetar nossa sanidade. Ele agora está encarando o chão como se estivesse raciocinando sobre tudo isso enquanto fala.
- Não é que a gente pense que ela seria uma mãe ruim. Com certeza não acho que ela seria uma boa mãe. Mas como é que Claudia ficaria se tivesse que compartilhar aquela menininha com aquela mulher? Se tivesse que olhá-la nos olhos toda semana? Ou pior ainda... e se Karol conseguisse fazer com que algum juiz ficasse com pena dela e lhe devolvesse seus direitos? Como eu e Claudiaficaríamos? Já perdemos Agus. Não podemos perder a filha de Agustin
também. Não vale a pena correr esse risco.
Entendo o que Diego está dizendo. Completamente.
Mas também sei que, depois de conhecer um pouco de Karol nos últimos dois dias, o ódio que eu sentia por ela está começando a se transformar em outra coisa. Talvez esteja se transformando em empatia.
Sinto que talvez isso pudesse acontecer com Diego e Claudia se eles dessem uma chance a ela.
Antes que eu sequer consiga pensar em algo para dizer, Diego percebe a
expressão no meu rosto.
- Ela matou nosso filho, Ruggero. Não faça nós dois nos sentirmos culpados por não conseguirmos perdoar isso.
Estremeço com sua resposta.
Com meu silêncio, acabei cutucando uma
ferida, mas não estou aqui para fazê-lo se sentir culpado pelas decisões que eles tomaram.
- Eu jamais faria isso.
- Quero que ela saia das nossas vidas e desta cidade.
- Só vamos conseguir nos sentir em segurança quando essas duas coisas
acontecerem. O humor de Diego mudou completamente.
Me sinto culpado por ter apenas sugerido que eles considerassem o ponto de vista de Karol. Foi ela que se meteu nessas circunstâncias, e, em vez de esperar que todos da vida de Agus se adaptem à situação dela, seria mais fácil e menos prejudicial se ela aceitasse as consequências de suas ações e respeitasse a decisão dos pais de Agustin.

Fico me perguntando qual seria o desejo de Agus se pudesse ver este desfecho. Todos sabemos que o acidente, apesar de evitável, não foi proposital. Mas será que ele ficou com raiva de Karol por ela ter ido embora?
Será que ele morreu a odiando?
Ou será que ele se envergonharia de seus pais, e de mim, por não deixar Karol ver April?
Nunca vou saber a resposta; ninguém nunca vai sabê-la.
É por isso que sempre encontro alguma outra coisa em que pensar quando começo a me perguntar se todos nós estamos contrariando o que Agus iria preferir.
Me recosto na cadeira do quintal e encaro o playground que em breve deve começar a assumir sua forma. Enquanto o encaro, penso em Agus.
Foi exatamente por isso que o desmontei.
- Agustin e eu fumamos nosso primeiro cigarro naquele brinquedo ali. Digo para Diego. - A gente tinha 13 anos.
Ele dá uma risada e se encosta na cadeira. Parece aliviado por eu ter
mudado de assunto.
- Onde foi que conseguiram um cigarro com 13 anos?
- Na picape do meu pai. Diego balança a cabeça.
- Foi ali que tomamos nossa primeira cerveja. Foi ali que ficamos chapados pela primeira vez. E, se não me falha a memória, foi ali que Agus deu seu primeiro beijo.
- Foi com quem? Pergunta Diego.
- Dana Freeman. Ela morava aqui na rua. Meu primeiro beijo também foi com ela. Foi a única vez que eu e Agus brigamos.
- Quem a beijou primeiro?
- Eu. Agus veio igual uma porra de uma águia e a tomou de mim.
Fiquei pê da vida, não porque gostava dela, e sim porque ela o escolheu em
vez de mim. Passamos umas oito horas inteiras sem nos falarmos.
- Ah, mas dá para entender. Ele era muito mais bonito do que você.
Dou uma risada.
Diego suspira, e agora nós dois estamos pensando em Agus, deixando o clima pesado. Odeio o fato de isso acontecer com tanta frequência, e me pergunto se talvez um dia isso vai começar a acontecer menos.
- Acha que Agus queria que eu tivesse sido diferente? Pergunta Diego.
- Como assim? Você foi um ótimo pai.
- Passei a vida inteira trabalhando num escritório, contabilizando vendas.
Às vezes, fico me perguntando se ele não queria que eu tivesse tido uma profissão melhor, como um bombeiro.
Ou um atleta. Eu não era o tipo de pai de que ele podia se gabar.

Que pena que Diego ache que Agus queria que ele tivesse sido diferente. Penso nas muitas conversas que Agus e eu tivemos sobre o futuro, e uma delas é a que mais chama a minha atenção.
- Agus nunca quis mudar de cidade. Digo. - Ele queria conhecer uma garota e ter filhos e levá-los para o cinema todo fim de semana e para a Disney todo verão. Lembro que pensei que ele era louco quando disse isso, pois meus sonhos eram bem mais expansivos.
Respondi que queria jogar futebol e viajar pelo mundo e ter meus negócios e uma renda estável. Eu não pensava tanto em levar uma vida simples quanto ele. Prossigo.
- Lembro que, depois que eu disse o quanto queria ser importante, ele
respondeu: “Não quero ser importante. Não quero essa pressão.
Quero ser discreto como meu pai, porque à noite, quando ele chega, está sempre de
bom humor.” Diego fica em silêncio por um tempo e então diz: - Que mentira. Ele nunca disse isso.
- Juro. Respondo, rindo.
- Ele dizia essas coisas o tempo todo.
Ele te amava exatamente como você é.
Diego inclina-se para a frente e encara o chão, entrelaçando as mãos.
- Obrigada por ter dito isso. Mesmo que não seja verdade.
- É verdade. Digo, tranquilizando-o. Mas Diego ainda parece triste.
Tento pensar numa história mais leve de Agus.
- Uma vez estávamos sentados dentro do playground e, do nada, um pombo pousou no quintal.
Ele estava a apenas um metro da gente. Agus o olhou e disse: “Porra, isso é um pombo?” E não sei o motivo, talvez fosse porque nós dois estivéssemos chapados, mas a gente riu tanto. Choramos de rir.
E durante anos, até ele morrer, sempre que víamos algo que não fazia sentido, Agusdizia: “Porra, isso é um pombo?”.
Diego ri.
- Então era por isso que ele sempre dizia aquilo? Faço que sim.
Diego começa a rir mais ainda. Ele chora de rir. E depois apenas chora.
Quando as lembranças abalam Diego desse jeito, sempre me afasto e o deixo sozinho. Ele não é o tipo de pessoa que quer ser consolada quando está triste. Ele quer ficar sozinho, só isso.

Entro em casa e fecho a porta.
Me pergunto se, em algum momento, as
coisas vão melhorar para ele e Claudia. Apenas cinco anos se passaram, mas será que ele ainda vai precisar chorar sozinho daqui a dez anos? Daqui a vinte anos?
Quero tanto que os dois melhorem, mas perder um filho é uma ferida que nunca sara. Fico me perguntando se Karol também chora como Diego e Claudia.
Será que ela sentiu esse tipo de perda quando tiraram April dela?
Porque, se a resposta for positiva, não consigo imaginar que Claudia e Diego, que sabem muito bem como é passar por essa situação, permitiriam de bom grado que ela continuasse se sentindo assim.

Meu Recomeço Onde histórias criam vida. Descubra agora