Karol

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Me viro ao ouvir sua voz, e inclino o pescoço até olhar Ruggero nos olhos.
Em circunstâncias normais, eu ficaria abalada ao vê-lo, mas já estou sentindo o máximo de sensações possível, então meu raciocínio está mais para um apático “ah, legal, que beleza”.
Ele me encara com uma intensidade que faz meus braços se arrepiarem.
- O que está fazendo aqui? Pergunta ele.
Merda. Merda. Merda.
- Nada.
Merda. Meus olhos se voltam para a rua. Depois olho para trás de Ruggero, para o que presumo que seja sua casa.
Lembro de Agus dizer que Ruggero morava na casa em frente à sua.
Qual a probabilidade de ele ainda
morar aqui?
Não faço ideia do que fazer.
Eu me levanto, e a sensação é de que tem
pesos sobre os meus pés.
Olho para Ruggero, mas ele não está mais me encarando.
Está fitando a antiga casa de Agus do outro lado da rua.
Ele passa a mão na mandíbula, e observo uma nova expressão perturbadora em seu rosto. Ele diz: - Por que está encarando aquela casa? Ele encara o chão, depois a rua, depois o sol, mas então volta o olhar para mim após eu não responder à pergunta.
Agora, é um homem completamente diferente daquele que encontrei mais cedo no mercado.
Não é mais o cara espontâneo que se move pelo bar como se estivesse de
patins.
- Seu nome não é Ana Carolina. Diz ele, como se perceber isso fosse algo deprimente.
Estremeço.
Ele encaixou todas as peças.
E agora parece querer desencaixar todas.
Ele aponta para a casa dele.
- Entre. A palavra sai brusca e em tom de exigência. Dou um passo em direção à rua, me afastando dele.
Sinto que estou começando a tremer bem na hora em que ele vem até a rua e se aproxima de mim.
Ele está de olho na casa do outro lado da rua outra vez e estende o braço ao meu redor, pressionando a mão com firmeza na minha lombar. Ele começa a me
conduzir, apontando para a casa na frente daquela onde minha filha mora.
- Entre antes que eles te vejam.
Eu imaginava que ele fosse terminar encaixando as peças.
Só queria que ele tivesse feito isso ontem. Não agora, quando estou a apenas cinco metros de distância dela.
Olho para a sua casa e depois para a casa de Diego e Claudia.
Não tenho como escapar dele. A última coisa que quero neste momento é fazer um escândalo. Meu objetivo era vir em paz e fazer tudo correr o mais tranquilamente possível.
Mas Ruggero parece querer o oposto.
- Por favor, me deixa em paz. Digo, rangendo os dentes.
- Isso não é da sua conta.
- Óbvio que é, porra.
- Ruggero, por favor.
Minha voz treme por conta do medo e das lágrimas.
Estou com medo dele, com medo deste momento, com medo de pensar que isto vai ser muito mais difícil do que eu temia. Por qual outro motivo ele estaria me afastando da casa deles?
Olho para a casa de Diego e Claudia, mas meus pés continuam indo na direção da casa de Ruggero. Eu até resistiria, mas, a esta altura, não sei mais se estou pronta para encarar o casal.
Achei que estava pronta quando entrei
no táxi mais cedo, mas agora que estou aqui e que Ruggero está nitidamente
aborrecido, não estou nem um pouco pronta para encará-los.
Com base nos últimos minutos, está na cara que minha visita talvez tivesse sido um tanto precipitada e que não teria sido nem um pouco bem-vinda.
Eles provavelmente foram informados quando fui solta e enviada para uma moradia provisória; deveriam imaginar que isto fosse acontecer em algum momento.
Os pesos foram tirados dos meus pés. Parece que estou flutuando de novo, bem alto, como um balão, e sigo Ruggero como se ele estivesse me
puxando por uma corda.
Estou constrangida de estar aqui. Constrangida o suficiente para seguir
Ruggero como se eu não tivesse voz nem pensamentos próprios.
Neste segundo, eu certamente não tenho nenhuma autoconfiança.
E minha camiseta é ridícula demais para uma situação desta magnitude.
Eu sou ridícula por achar que isto deveria ser feito assim.
Ruggero fecha a porta quando chegamos à sua sala de estar.
Ele parece enojado.
Não sei se é por estar me vendo ou se ele está pensando na noite de ontem.
Ele anda de um lado a outro da sala, com a palma da mão encostada na testa.
- Foi por isso que apareceu no meu bar? Estava tentando me enganar para que eu te trouxesse até ela?
- Não.
Minha voz soa patética.
Ele passa as mãos pelo rosto, frustrado. Depois para e apenas murmura:
- Cacete.
Ele está tão puto comigo. Por que sempre tomo as piores decisões?
- Tem um dia que você chegou aqui na cidade. Ele pega chaves numa mesa. -Achou mesmo que essa era uma boa ideia? Aparecer aqui tão rápido assim?
Tão rápido? Ela tem quatro anos de idade.
Ponho o braço por cima da minha barriga embrulhada.
Não sei o que fazer. O que faço? O que posso fazer? Tem que haver alguma coisa.
Alguma espécie de meio-termo.
Eles não podem simplesmente decidir em conjunto o que é melhor para April sem me consultar. Podem?
Podem.
Neste contexto, sou eu que estou sendo insensata; eu só estava muito assustada para admitir isso.
Quero lhe perguntar se tem algo que eu possa fazer para que eles me escutem, mas seu olhar fulminante me faz pensar
que estou totalmente errada.
Começo a me perguntar se sequer tenho o direito de fazer perguntas.
Ele desce o olhar para a estrela-do-mar de borracha na minha mão.
Vem até mim e estende a mão.
Ponho a estrela-do-mar em sua palma. Não sei por que a entrego.
Se ele vir que eu trouxe um brinquedo, quem sabe ele não perceba que minhas intenções são boas?
- É sério? Um mordedor para bebê? Ele o arremessa no sofá como se fosse a coisa mais imbecil que já viu.
- Ela tem quatro anos. Ele anda na direção da cozinha.
- Vou levá-la para casa. Espere eu entrar com a picape na garagem. Não quero que eles te vejam.
Não me sinto mais como se estivesse flutuando; pelo contrário, me sinto
pesada e congelada, como se meus pés estivessem presos no concreto desta
casa.
Dou uma olhada pela janela da sala de estar, na direção da casa de Diego e Claudia. Estou tão perto. Tudo que nos separa é uma rua. Uma rua vazia e sem
trânsito.
Enxergo com nitidez o que está prestes a acontecer.
Eles não querem saber de mim, tanto que Ruggero sabia que devia impedir minha visita. Isso significa que não vai haver negociação nenhuma.
O perdão que eu esperava que tivesse chegado até eles nunca deu as caras.
Eles ainda me odeiam.
E, pelo jeito, todas as outras pessoas que fazem parte da vida deles também.
Só vou poder ver minha filha se, por algum milagre, eu conseguir levar a
questão para o sistema judiciário, o que exigiria um dinheiro que não tenho e demoraria anos, e não suporto a ideia de esses anos passando.
Eu já perdi tanta coisa.
Se quero ver April alguma vez na vida, esta é minha única chance.
Se quero ter a oportunidade de implorar aos pais de Agus que me perdoem, é
agora ou nunca.
Agora ou nunca.
Provavelmente Ruggero só perceberia que não estou indo atrás dele, em
direção à garagem, após pelo menos uns dez segundos.
Talvez eu até consiga chegar até lá antes de ele me alcançar.
Saio furtivamente e atravesso a rua correndo o mais rápido possível.
Estou no jardim deles.
Meus pés estão correndo pela grama em que April brincou.
Estou batendo à porta da casa deles.
Estou tocando a campainha deles.
Estou tentando espiar pela janela para vê-la.
- Por favor. Sussurro, batendo mais forte. Meu sussurro se transforma em pânico quando escuto Ruggero se aproximar de mim por trás.
- Me desculpem! Grito, batendo à porta. Minha voz agora está saindo em tom de súplica, assustada.
- Me desculpem, me desculpem, deixem-me vê-la, por favor!
Estou sendo puxada, e então carregada de volta para a casa do outro lado da rua. Apesar de eu me esforçar para escapar dos braços dele, fico encarando a porta enquanto ela diminui cada vez mais de tamanho, na esperança de vislumbrar minha filhinha nem que seja por meio segundo.
Enquanto estou do lado de fora, não vejo nenhum movimento na casa deles. Depois volto para a casa de Ruggero e sou colocada em seu sofá.
Ele está segurando o telefone, andando de um lado para o outro da sala enquanto disca um número.
Apenas três dígitos. Ele está ligando para a polícia.
Entro em pânico.
- Não. Eu imploro.
- Não, não, não.
Eu me jogo pela sala na tentativa de alcançar seu telefone, mas tudo que ele faz é colocar a mão no meu ombro e me conduzir de volta ao sofá.
Me sento, pressionando meus cotovelos nos joelhos encostando meus dedos trêmulos na boca.
- Por favor, não chame a polícia. Por favor.
Fico parada, tentando não parecer ameaçadora, torcendo  para que ele
apenas me olhe nos olhos por tempo o suficiente para sentir minha dor.
Seus olhos encontram os meus bem no instante em que lágrimas começam a escorrer pelas minhas bochechas.
Ele para antes de completar a ligação. Depois me encara... me analisando. Procurando uma promessa no meu rosto.
- Eu não vou voltar.
Se ele ligar para a polícia, isso não vai pegar nada bem para mim.
Não posso ter mais nenhum antecedente criminal, embora, até onde eu saiba, eu
não tenha infringido nenhuma lei.
Mas só estar aqui sem que minha
presença seja desejada já pesa contra mim. Ele dá um passo na minha direção.
- Você não pode voltar. Jure para mim que a gente nunca mais vai te ver, se não ligo para a polícia agora.
Não posso. Não posso jurar isso.
O que mais eu tenho na vida além da
minha filha? Ela é tudo que tenho.
É por causa dela que ainda estou viva.
Não acredito que isto está acontecendo.
- Por favor! Exclamo, sem nem saber o que estou suplicando.
Só quero que alguém me ouça.
Que alguém me escute.
Que alguém entenda o quanto estou sofrendo.
Quero que ele seja o homem que conheci
no bar ontem à noite.
Quero puxá-lo para o meu peito e que ele me passe a impressão de que tenho um aliado. Quero que ele me diga que vai ficar tudo bem, apesar de eu ter certeza absoluta de que as coisas nunca, nunca vão ficar bem.
Os próximos minutos são um borrão de frustração. Estou em meio a um caos de emoções.
Entro na picape de Ruggero, e ele me leva embora do bairro em que minha filha cresceu.
Finalmente estou na mesma cidade que ela depois de tantos anos, mas, ao mesmo tempo, nunca me senti mais distante dela do que neste exato momento.
Pressiono a testa no vidro do passageiro e fecho os olhos, querendo poder recomeçar do início.
Exatamente do início.
Ou pelo menos pular direto para o fim.

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