Karol

67 10 1
                                    


Fecho a torneira e vou atrás dele até o beco. Ele tira um molho de chaves do bolso e procura entre elas.
- Desculpe a bagunça. Diz ele, colocando a chave na fechadura.
- Costumo deixar tudo um pouco mais arrumado caso apareça algum pinguço, mas faz tempo que isso não acontece.
Ele abre a porta, deixando à mostra uma escada bem iluminada.
- Um pinguço? Pergunto enquanto subo atrás dele.
A escada faz uma curva após o último degrau, e a porta dá para um espaço mais ou menos do tamanho da cozinha dos fundos do bar. É a mesma planta baixa, mas aqui os acabamentos foram feitos para ser uma moradia.
- Chamamos de pinguços os bêbados que sobram no fim da noite. Às vezes, a gente põe a pessoa aqui no sofá até ela ficar mais sóbria e lembrar para onde deve ir.
Ele acende a luz, e o sofá é a primeira coisa que vejo. É velho e puído, e só de olhar dá para perceber que é confortável. Tem um rack com uma TV
tela plana a alguns metros de uma cama king size.
É uma quitinete, com uma cozinha e uma pequena sala de jantar, além de uma janela que dá para a rua em frente ao bar. É o dobro do tamanho da minha, e ela tem até um certo charme.
- É bacana aqui. Aponto para o balcão na cozinha quando vejo ao menos trinta canecas de café encostadas na parede.
- Você é viciado em café ou apenas em canecas de café?
- Longa história. Gaston mexe nas chaves outra vez. - Tem um depósito atrás desta porta. Tinha uma mesa da última vez que chequei, mas não posso prometer nada. Ele destranca a porta e, quando a abre, vejo duas mesas de 1,80m empilhadas verticalmente contra a parede. Ajudo-o a pegar uma.
- Precisa das duas?
- Uma já é o suficiente.

Encostamos a mesa no sofá, depois ele fecha e tranca a porta.
Cada um de nós carrega uma ponta ao descermos com a mesa.
- Podemos deixá-la na base da escada por enquanto, depois a colocamos na caçamba da picape de Ruggero à noite. Diz ele.
- Ótimo. Obrigada.
- Que tipo de almoço vai ser?
- Cada um vai levar um prato, só isso.
Não quero admitir que é um almoço de Dia das Mães. Assim ia ficar parecendo que vou comemorar a data, e não quero ser julgada. Não que Gaston pareça julgar os outros. Ele parece ser uma pessoa decente e é bonito, então eu provavelmente o olharia com outros olhos se já não soubesse como é beijar Ruggero.
Não consigo olhar a boca de nenhum homem sem pensar que queria estar olhando a boca de Ruggero. Odeio o fato de que ainda o acho tão atraente quanto na primeira noite em que estive no bar. Seria tão mais fácil sentir atração por outra pessoa... por qualquer outra pessoa.
Gaston apoia a mesa na base da escada.
- Precisa de cadeiras?
- Cadeiras. Merda. Preciso, sim.
Nem pensei nisso. Ele sobe de novo, e o acompanho.
- De onde você e Ruggero se conhecem?
- Foi ele que causou minha lesão no futebol. Paro no topo da escada.
- Ele acabou com sua carreira no futebol e agora vocês são... amigos? Não sei se entendo como essa trajetória é possível.
Gaston me observa cautelosamente enquanto destranca novamente a
porta do depósito.
- Não sabe mesmo a história dele?
Balanço a cabeça.
- Passei alguns anos meio que ocupada com outras coisas. Ele ri baixinho.
- Sim, imagino. Vou te contar a versão resumida. Ele abre a porta e começa a pegar cadeiras.
- Precisei fazer uma cirurgia no joelho depois da lesão, eu sentia muita dor; fiquei viciado em analgésicos e gastei todo centavo que ganhei na NFL para sustentar meu vício.
Ele põe duas cadeiras para fora e então pega mais duas.
- Digamos apenas que esculhambei pra cacete a minha vida. Ruggero ficou sabendo disso e me procurou. Acho que ele estava se sentindo meio que responsável, apesar de o lance com meu joelho ter sido um acidente. Mas ele apareceu quando todo mundo tinha ido embora. Ele garantiu que eu ia receber a ajuda de que precisava.
Não sei o que fazer com todas as informações que ele acaba de me dar.
- Ah. Caramba. Gaston empilha as seis cadeiras contra a parede antes de fechar a porta. Ele pega quatro, eu pego duas, e descemos as escadas.
- Ruggero me deu um emprego e alugou este apartamento para mim quando saí da reabilitação dois anos atrás. Encostamos as cadeiras naparede antes de sairmos.
- Para ser sincero, nem lembro como isso
começou, mas toda semana ele me dá uma caneca de café no dia que marca
minha sobriedade. Ele continua me dando uma caneca toda sexta, mas agora é por pura babaquice mesmo, pois ele sabe que estou ficando sem espaço.
Para ser sincera, isso é meio que encantador.
- Tomara que você goste de café.
- Eu sobrevivo à base de café. Você não ia gostar de ficar perto de mim se eu não tivesse tomado.
Os olhos de Gaston se fixam em alguma coisa atrás de mim. Eu me viro e vejo Ruggero parado entre sua picape e a porta dos fundos do bar.
Ele está encarando a gente. Gaston não para como eu, ele continua andando em direção à porta do bar.
- Karol veio pegar uma mesa e algumas cadeiras para um compromisso que ela tem no domingo. Deixamos tudo na base da escada. Pegue antes de ir embora.
- Ana. Diz Ruggero corrigindo Gaston.
- Ana. Que seja. Diz Gaston.
- Não esqueça. Mesa. Cadeiras. Carona.
Ele entra no bar.
Ruggero desce o olhar para o chão por um momento antes de me encarar.
- Que compromisso é esse que precisa de mesa? Coloco as mãos nos bolsos de trás da calça.
- É só um almoço que fui convidada para ir no domingo. No meu prédio.
Ele continua me encarando como se quisesse que eu me explicasse melhor.
- Domingo é Dia das Mães.
Faço que sim e começo a me dirigir à porta dos fundos.
- Pois é. Então posso muito bem comemorar com as mães do meu prédio, já que não posso comemorar com minha própria filha. Digo secamente enquanto entro no bar, talvez com um tom ligeiramente acusatório.
A porta fecha, ruidosa, atrás de mim, então vou direto para a pia e abro a
torneira. Pego o fone que Mary Anne me emprestou na semana passada, mas desta vez o conecto no celular agora que finalmente tenho um.
Baixei um audiobook para enfrentar o turno. Sinto uma leve brisa no pescoço quando Ruggero entra no bar.
Espero alguns segundos e olho por cima do ombro para ver onde ele está e o que
está fazendo.
Ele está caminhando para a frente do bar, o tempo todo com o olhar fixo
naquela direção. Quando vejo essa sua expressão de indiferença, não consigo decifrar no que ele está pensando. Mas, ao mesmo tempo, não vejo muitas expressões suas desde a primeira noite em que o vi trabalhando.
Naquela noite, ele parecia relaxado e tranquilo atrás do balcão, mas desde o
momento em que descobriu quem sou, parece inflexível na minha presença.
É quase como se estivesse fazendo o possível para me impedir de descobrir
quais são os seus pensamentos.

Meu Recomeço Onde histórias criam vida. Descubra agora