Ruggero

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As pessoas costumam ser enaltecidas após a morte.
São até aclamadas como heróis de vez em quando. Mas nada do que foi dito sobre Agus foi aumentado para que ele fosse lembrado com carinho.
Ele era tudo o que os outros disseram a seu respeito: gentil, engraçado, atlético, honesto, carismático, um bom filho.
Um ótimo amigo.
Todo santo dia eu penso que queria ter trocado de lugar com ele, na vida
e na morte.
Eu abdicaria da vida que estou vivendo num piscar de olhos se isso significasse que ele poderia ter um único dia com April.
Não sei se eu estaria tão irritado, e me sentindo tão protetor em relação a April, se Karol tivesse apenas sido a responsável pelo acidente. Mas ela foi muito além: estava dirigindo quando não devia, acima da velocidade permitida, tinha bebido, fez o carro capotar.
E depois foi embora.
Ela abandonou Agus lá para que ele morresse, voltou a pé para casa e foi dormir por achar que conseguiria se safar. Ele está morto porque ela teve medo de se meter em apuros.
E agora quer ser perdoada?
Nem consigo pensar nos detalhes da morte de Agus neste momento.
Não com ela sentada ao meu lado na picape, pois prefiro morrer a lhe dar o
prazer de conhecer April.
Se isso significa jogar a picape de uma ponte com nós dois dentro, talvez eu esteja me sentindo vingativo o suficiente para fazer isso agora.
O fato de que ela achou que pudesse aparecer assim me deixa perplexo.
Estou puto com a presença dela aqui, mas acho que minha raiva é ainda
maior porque, ontem à noite, ela sabia quem eu era.
Quando nos beijamos, quando a abracei. Eu não devia ter ignorado meu instinto. Tinha algo de estranho nela.
Não parece a Karol que vi nas reportagens cinco anos atrás.
A Karol de Agus tinha cabelos longos e loiros. Mas nunca vi muito bem o rosto dela naquela época.
Não cheguei a conhecê-la pessoalmente, mas acho que a foto policial da garota que matou meu melhor amigo devia ter grudado mais na minha cabeça.
Estou me sentindo um idiota.
Estou com raiva e magoado, como se
alguém tivesse se aproveitado de mim. Até mesmo hoje, no mercado, ela sabia quem eu era e não me deu nenhum sinal de quem ela era.

Abro o vidro para sentir um pouco de ar fresco, na esperança de que isso me acalme. As articulações dos meus dedos estão pálidas enquanto seguro o volante.
Ela está olhando pela janela, sem reação. Talvez esteja chorando. Sei lá.
Não estou nem aí, porra.
Não mesmo.
Ela não é a garota que conheci ontem. Aquela garota não existe.
Ela estava fingindo, e eu caí direto na sua armadilha.

Meses atrás Diego mencionou estar preocupado, quando descobrimos que ela tinha sido solta. Ele achou que isso poderia acontecer, que talvez ela aparecesse querendo conhecer April.
Até instalei uma câmera de segurança na minha casa, apontando para o jardim deles. Foi assim que descobri que tinha uma pessoa sentada no meio-fio.
Falei para Diego que era besteira se preocupar com isso.
"Ela não apareceria assim. Não depois do que fez."
Seguro o volante com ainda mais força. Talvez April tenha nascido de Karol, mas o direto dela em relação à menina acaba aí.
Quando o prédio dela aparece, paro a picape e ponho o câmbio automático no ponto morto. Não desligo o motor, mas Karol não se mexe para sair.
Achei que ela fosse saltar apressada antes mesmo de eu parar completamente, como fez ontem, mas ela parece estar querendo dizer alguma coisa. Ou talvez esteja receando voltar para o apartamento, provavelmente tanto quanto receia continuar aqui.
Ela está encarando suas mãos unidas no colo. Leva uma delas até o cinto e o desafivela, mas depois continua na mesma posição.
April se parece com ela. Sempre imaginei isso, pois não vejo muito de Agus nas feições de April.
Até esta noite, no entanto, eu não fazia ideia do quanto é parecida com a mãe.
As duas têm o mesmo tom castanho claro, no cabelo, que é liso e meio enrolado nas pontas. Ela tem os olhos de Karol.
Talvez aí esteja a explicação do meu alerta vermelho de ontem: meu
subconsciente a reconheceu antes mesmo de mim.
Quando os olhos de Karol se voltam para mim, sinto um aperto de decepção: April se parece tanto com ela quando está triste. É como se eu estivesse vendo o futuro e quem April vai ser um dia.

Não gosto de perceber que a pessoa de que eu menos gosto do mundo lembra a pessoa que mais amo no mundo.
Karol enxuga os olhos, mas não me inclino para pegar um guardanapo no porta-luvas. Ela pode usar a camiseta do Mountain Dew que está vestindo há dois dias.
- Eu não sabia quem você era quando cheguei ao seu bar ontem à noite. Diz ela com a voz trêmula.
- Juro.
Ela encosta a cabeça no apoio e fica olhando para a frente.
Seu peito sobe com uma inspiração profunda. Ela expira bem no momento em que meu dedo toca o botão de destrancar a porta.
É minha deixa para que ela vá embora.
- Não me importo com ontem. Eu me importo com April. E só.
Vejo uma lágrima deslizar pelo seu maxilar. Odeio o fato de que sei o gosto de suas lágrimas.
Odeio a parte de mim que quer estender o braço e enxugá-la.
Será que ela chorou quando estava deixando Agus para trás naquela noite?
Ela se mexe com uma tristeza graciosa, inclinando-se para frente, pressionando o rosto nas mãos.
Seus movimentos enchem a picape com o
cheiro do seu xampu.
Tem cheiro de fruta. De maçã.
Apoio o cotovelo na porta e me afasto dela, cobrindo a boca e o nariz.
Olho pela janela, sem querer saber mais nada a seu respeito.
Não quero saber como é seu cheiro,
como é sua voz, como são suas lágrimas, o efeito que sua dor tem em mim.
- Eles não querem você na vida dela, Karol. O choro se mistura a um arquejo, que parece repleto de anos de mágoa
quando ela diz: - Ela é minha filha.
Neste momento, sua voz decide se reconectar à sua consciência.
Não é mais uma fina espiral de ar que escapa da sua boca; é uma voz cheia de
pânico e desespero.
- April é filha deles. Seus direitos foram suspensos. Saia da minha picape e faça um favor para todos nós: volte para Denver.
Não sei se o soluço de choro que lhe escapa é mesmo real.
Ela enxuga as bochechas, abre a porta e sai da minha picape.
Vira-se para mim antes de fechar a porta, e ela se parece tanto com April; até mesmo seus olhos ficam um pouco mais escuros quando ela chora, assim como acontece com April.
Sinto seu olhar bem profundamente, mas sei que é somente por sua grande semelhança com April.
Estou sofrendo por April. Não por esta
mulher.
Karol parece não saber se deve se afastar, me responder ou gritar.
Ela abraça a si mesma e me encara com dois olhos imensos e arrasados.
Inclina a cabeça para o céu por um instante, inspirando de forma trêmula.
- Vá se foder, Ruggero.
A dor pungente de sua voz me faz estremecer, mas tento parecer o mais
indiferente possível.
Suas palavras nem sequer foram um grito, foram apenas uma afirmação baixa e incisiva.
Ela bate a porta da picape com força e depois espalma as mãos na minha
janela.
- Vá se foder!
Não fico esperando-a repetir pela terceira vez. Dou ré e volto para a rua.
Sinto um nó na barriga que parece amarrado ao seu pulso.
Quanto mais me afasto dela, mais o sinto se desfazer.
Não sei o que eu esperava.
Era assim que eu a imaginei durante todos esses anos.
Uma garota sem nenhum remorso pelo que fez.
Uma mãe totalmente desapegada da filha a quem deu à luz.
Não é fácil deixar de lado cinco anos de noções preconcebidas, mas sólidas.
Na minha cabeça, Karol só existe de uma maneira. Uma garota sem remorsos. Indiferente. Insensível. Indigna.

Não consigo conciliar o turbilhão de emoções que deve fazê-la sofrer tanto por não poder participar da vida de April quanto pela falta de cuidado que ela teve com a vida de Agus.
Sigo dirigindo enquanto penso em um milhão de coisas que deveria ter dito.
Em um milhão de perguntas cujas respostas ainda não tenho.
Por que não chamou por socorro?
Por que o abandonou lá?
Por que acha que merece causar mais tumulto nas vidas que já destruiu?
Por que ainda quero abraçá-la?



Então, espero que estejam gostando,
e curiosas, vamos interagir beijinhos.

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