Karol

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Partes de mim se moviam sem que meu cérebro soubesse o que estava acontecendo. Minhas mãos buscavam coisas que eu nem sabia direito que estava procurando.
Fui ficando histérica, pois a cada segundo que se passava eu percebia melhor o quanto minha vida seria diferente a partir daquele momento. Percebia que aquele segundo alterara o caminho onde nós dois estávamos, qualquer que fosse ele, e que as coisas jamais seriam as mesmas, e que todas as partes de mim que tinham se desconectado naquele acidente jamais se reconectariam por completo outra vez.
Rastejei para fora do carro pelo espaço entre o chão e a minha porta e, quando fiquei de pé, vomitei.
Os faróis estavam iluminando uma fileira de árvores, mas aquela luz não nos ajudava em nada, então fui correndo para o lado do passageiro para te soltar, mas não consegui.
Lá estava seu braço, saindo de debaixo do carro. O luar fazia brilhar seu sangue. Peguei sua mão e a apertei, mas estava fria. Eu ainda estava murmurando
seu nome.
- Agus, Agus, Agus, não, não, não.
Fui até o para-brisa e tentei quebrá-lo aos chutes, mas, apesar de ele já estar rachado, não consegui quebrá-lo o suficiente para passar por ele ou para te tirar lá de dentro.
Me ajoelhei e encostei o rosto no vidro, e foi então que vi o que tinha feito com você. Aquilo me fez perceber uma dura realidade: por mais que você ame alguém, ainda assim é capaz de lhe fazer coisas terríveis.
Foi como se uma onda da dor mais intensa possível tivesse passado por cima de mim. Meu corpo foi levado por ela. Ela começou pela minha cabeça e eu me curvei, chegando até meus dedos dos pés.
Soltei um grunhido e solucei, e quando voltei para o carro a fim de tocar sua mão outra vez, não havia nada. Nenhuma pulsação no seu punho. Nenhum batimento cardíaco na sua palma.
Nenhum calor na ponta dos seus dedos.
Gritei. Gritei tanto que, depois, não consegui fazer mais nenhum barulho.
E então entrei em pânico.
É a única maneira de descrever o que
me aconteceu.
Não consegui encontrar nossos celulares, então comecei a correr para a rodovia. Quanto mais longe eu chegava, mais confusa ficava.
Eu não conseguia assimilar que o que tinha acontecido era real nem que o que estava acontecendo era real.
Eu estava correndo por uma rodovia com um sapato só.
Eu conseguia me ver como se estivesse na frente de mim mesma, correndo na minha direção, como se fosse um
pesadelo, sem fazer nenhum progresso.
Não foram as lembranças do acidente que demoraram para reaparecer na minha cabeça.
Foi aquele momento.
A parte da noite que foi abafada pela descarga de adrenalina e pela histeria que me derrubaram.
Comecei a fazer barulhos que não sabia que era capaz de fazer.
Não conseguia respirar, porque você estava morto, e como eu deveria respirar quando você nem tinha ar?
Foi a pior coisa que percebi em toda a minha vida, e então caí de joelhos e gritei na escuridão.
Não sei quanto tempo passei na beira da estrada. Havia carros passando por mim, e eu ainda estava com seu sangue nas minhas mãos, e estava assustada e irritada e não conseguia tirar o rosto da
sua mãe da minha cabeça.
Eu tinha te matado e todos iam sentir sua
falta, e você não estaria mais presente para fazer as pessoas sesentirem valorizadas ou importantes, e a culpa era minha, e eu só queria morrer.
Não me importava com mais nada.
Eu só queria morrer.
Fui para o meio da pista quando deveria ser mais ou menos umas 23h, e um carro precisou desviar para não me atropelar. Tentei três vezes, com três carros diferentes, mas nenhum deles bateu em mim, e todos os motoristas ficaram putos por eu estar no meio da rodovia no
escuro. Buzinaram para mim e me xingaram, mas ninguém acabou com a minha vida nem me ajudou.
Eu já tinha caminhado mais de 1,5km e não sabia a que distância do meu prédio eu estava, mas sabia que se eu conseguisse chegar lá poderia me jogar da varanda do meu apartamento no quarto andar, pois naquele momento eu não conseguia pensar em mais nada para fazer. Eu queria estar com você, mas na minha cabeça você não estava mais preso debaixo do carro após o acidente. Estava em outro lugar, flutuando na escuridão, e eu tinha decidido que me juntaria a você, pois onde estava o meu
propósito de vida?
Você era o meu único propósito.
Comecei a encolher a cada segundo que se passava, até me sentir invisível.
E essa é a última coisa de que me lembro. Houve um longo período de nada entre o momento em que te deixei e eu ter percebido que te deixei.
Horas.

Disseram à sua família que voltei a pé para casa e peguei no sono, mas não foi exatamente isso que aconteceu.
Tenho quase certeza de que desmaiei de choque, pois quando os policiais bateram
à porta do meu quarto na manhã seguinte e abri os olhos, eu estava
no chão. Percebi uma pequena poça de sangue ao lado da minha cabeça.
Devo ter batido a cabeça quando caí, mas não tive tempo de investigar porque havia policiais dentro do meu quarto e um deles estava com uma das mãos no meu braço, me levantando.
Foi a última vez que vi meu quarto.
Lembro que Clarissa, que dividia o apartamento comigo, pareceu ficar horrorizada, mas não por mim, estava horrorizada por si mesma, como se tivesse morado com uma assassina durante todo aquele tempo sem nem fazer ideia daquilo. Seu namorado, cujo nome a gente nunca conseguia lembrar. -Jason ou Jackson ou Justin, consolava-a como se eu houvesse arruinado o dia dela.
Quase pedi desculpas a ela, mas não consegui conectar meus pensamentos à minha voz. Eu tinha perguntas, estava confusa, estava fraca, estava sofrendo. No entanto, o sentimento mais forte de todos a me avassalar naquele momento foi minha solidão.
Mal sabia eu que aquele sentimento se tornaria perpétuo.
Permanente.
Quando me colocaram no banco de trás da viatura, eu soube que minha vida tinha chegado ao auge com você e que nada depois de você importaria mais.
Houve um antes de você e um durante você.
Por algum motivo, nunca imaginei que haveria um depois de você.
Mas havia, e eu estava nele.
Estarei nele para sempre.

Ainda não terminei de ler, mas minha garganta está seca e estou emocionalmente exausta e com medo do que Ruggero está pensando de mim no momento. Ele está segurando o volante com tanta força que as articulações de seus dedos ficaram pálidas.
Pego minha garrafa de água e dou um longo gole. Ruggero dirige o percurso inteiro até sua casa e, ao chegarmos, ele põe o câmbio no ponto morto e apoia o cotovelo na porta. Ele não me olha.
- Continue lendo.
Agora minhas mãos estão tremendo. Não sei se consigo continuar sem chorar, mas acho que ele não se importaria se eu lesse chorando.
Dou outro gole e começo a ler o próximo capítulo.

Querido Agus,

O que aconteceu na sala de interrogatório foi exatamente assim:
Eles: Quanto você bebeu?
Eu: Silêncio
Eles: Quem a levou para casa depois do acidente?
Eu: Silêncio
Eles: Você está sob o efeito de alguma substância ilegal?
Eu: Silêncio
Eles: Você ligou para a emergência?
Eu: Silêncio
Eles: Sabia que ele ainda estava vivo quando você fugiu da cena?
Eu: Silêncio
Eles: Sabia que ele ainda estava vivo quando o encontramos uma hora e meia atrás?
Eu: Gritos
Muitos gritos.
Gritos até eles me colocarem de volta na cela e me dizerem que vêm me buscar quando eu me acalmar.
Quando eu me acalmar.
Eu não me acalmei, Agus.

Acho que perdi a cabeça um pouquinho
naquele dia.
Eles me levaram para a sala de interrogatório mais duas vezes nas 24 horas seguintes.
Eu não tinha dormido, estava de coração partido, não conseguia comer nem beber nada.
Eu só. Queria. Morrer.
E então, quando eles me contaram que você ainda estaria vivo se eu simplesmente tivesse ligado para a emergência, eu realmente morri.

Era uma segunda-feira, eu acho.
Dois dias depois do nosso acidente.
Às vezes tenho vontade de comprar uma lápide e mandar inscreverem essa data nela, apesar de eu continuar fingindo que não estou morta. Meu epitáfio diria: Karol Sevilla, faleceu dois dias após a morte do seu amado Agustín.
Não tentei ligar para a minha mãe no meio de tudo aquilo.
Eu estava deprimida demais para ligar para qualquer pessoa.
E como é que eu telefonaria para meus amigos da minha cidade e contaria o que eu tinha feito?

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