Karol

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Gaston traz um engradado cheio de copos para os fundos e os põe na pia
para mim.
- Vou embora. Diz ele. - Ruggero disse que poderia te dar uma carona se você não se incomodasse em esperar.
Ele ainda tem que fazer umas besteiras lá, é coisa de meia hora.
- Obrigada. Digo e ele tira o avental e o joga num cesto onde estão todos os aventais dos outros funcionários.
- Quem é que lava isso?
Não sei se isso faz parte do meu trabalho. Nem sei direito qual é o meu trabalho. Ruggero não estava aqui para me treinar durante a noite, e todo mundo meio que ficou me mostrando uma ou outra coisa que eu poderia fazer, então simplesmente saí fazendo tudo o que podia.
- Lá em cima tem uma lava e seca. Diz Gaston.
- O bar tem um segundo andar?
Não vi nenhuma escada. Ele aponta para a porta que dá para o beco.
- A escada de acesso fica lá fora. Metade do espaço é usada como depósito, a outra parte é um apartamento studio com uma lava e seca.
- Eu preciso colocá-los para lavar lá em cima? Ele balança a cabeça.
- Costumo fazer isso pela manhã. Eu moro lá. Ele tira a camisa para jogá-la no cesto bem na hora em que Ruggero entra
na cozinha.
Agora Gaston está sem camisa, vestindo uma camiseta para sair enquanto Ruggero me encara. Sei que parece que eu estava de olho em Gaston enquanto ele trocava de roupa, mas nós dois só estávamos conversando. Não o encarei porque ele estava momentaneamente sem camisa, não que isso importe, mas fico meio constrangida, então me viro
e me concentro na louça.
Ruggero e Gaston conversam sem que eu consiga escutar, mas ouço Gaston dar boa-noite a Ruggero e ir embora.
Ruggero volta para a frente do bar.
Fico sozinha, mas prefiro assim. Com Ruggero, me sinto menos à vontade
e mais tensa.
Termino o trabalho e dou uma limpada em tudo pela última vez. Já é 00h30, e não sei por quanto tempo Ruggero ainda vai trabalhar. Não quero incomodá-lo, mas estou cansada demais para voltar a pé até minha casa, então fico esperando a carona.
Pego minhas coisas e me sento no balcão. Pego meu caderno e minha caneta.
Não sei se no futuro vou chegar a fazer alguma coisa com as cartas para Agus, mas escrevê-las é meio que uma experiência catártica.

Querido Agus,

Ruggero é um babaca. Isso já ficou evidente. O cara transformou uma livraria em um bar. Que tipo de monstro faria isso?
Mas... estou começando a achar que ele também tem um lado mais doce.
Talvez essa fosse o razão de vocês dois terem sido melhores amigos.

- O que está escrevendo?
Fecho o caderno bruscamente ao ouvir sua voz. Ruggero está tirando o avental, olhando para mim. Enfio o caderno na bolsa e murmuro: - Nada.
Ele inclina a cabeça, e seus olhos se enchem de curiosidade.
- Gosta de escrever? Assinto.
- Você acha que está mais para artista ou mais para cientista? Que pergunta esquisita. Dou de ombros.
- Sei lá. Artista, eu acho. Por quê? Ruggero pega um copo limpo e o leva à pia. Enche-o de água e dá um gole.
- April tem uma imaginação incrível. Sempre me pergunto se ela puxou isso de você.
Meu coração se enche de orgulho. Adoro quando ele revela pequenos detalhes sobre ela. Também adoro saber que tem alguém na vida dela que aprecia sua imaginação. Eu tinha uma imaginação vívida na infância, mas minha mãe a reprimiu. Foi só quando Ivy me incentivou a retomar esse meu lado que realmente senti que alguém o apoiava.
Agustín teria apoiado, mas acho que ele nem sabia desse meu lado artístico.
Ele me conheceu quando essa parte de mim ainda estava profundamente adormecida.
Mas agora ela despertou. Graças a Ivy. Escrevo o tempo inteiro: poemas, cartas para Agus, ideias para livros que talvez nunca saiam do papel. Acho que a escrita foi o que me salvou de mim mesma.
- Escrevo cartas na maioria das vezes.
Imediatamente me arrependo de dizer isso, mas Ruggero não reage.
- Eu sei. Cartas para Agustín.
Ele põe o copo na mesa ao seu lado e cruza os braços por cima do peito.
- Como você sabe disso?
- Vi uma delas. Diz ele.
- Não se preocupe; não li. Só vi uma das
páginas quando peguei sua bolsa no guarda-volumes do mercado.
Bem que me perguntei se ele não tinha visto a pilha de papéis.
Fiquei preocupada achando que talvez ele tivesse dado uma espiada nas cartas,
mas ele está dizendo que não leu nenhuma, e, por algum motivo, acredito.
- Quantas cartas escreveu para ele?
- Mais de trezentas. Ele balança a cabeça, incrédulo, mas então algo o faz sorrir.
- Agus odiava escrever. Ele costumava me pagar para eu escrever suas redações. Dou uma risada, pois escrevi uma ou outra redação para ele quando
estávamos juntos.
É estranho conversar com alguém que de alguma forma conhecia Agus da mesma maneira que eu. Realmente nunca passei por isso antes. É bom pensar nele de um jeito que me faz rir em vez de chorar.
Queria saber mais sobre quem Agus era quando não estava comigo.
- Talvez April seja escritora no futuro. Ela gosta de inventar palavras. Diz Ruggero.
- Se ela não sabe como alguma coisa se chama, simplesmente inventa um nome.
- Tipo o quê?
- Luminária solar, sabe aquelas que vemos nas calçadas? Não sabemos o porquê, mas ela as chama de fatata.
Isso me faz sorrir, mas também sinto uma pontada dolorida de inveja.
Quero conhecê-la como ele a conhece.
- O que mais? Falo mais baixo, pois estou tentando disfarçar o tremor na minha voz.
- Outro dia, ela estava andando de bicicleta e seus pés não paravam de
escorregar dos pedais. Ela disse: "Meus pés não param de eschinelar."
Perguntei o que era eschinelar, e ela disse que, quando usa chinelos, seus
pés escorregam para fora.
E ela acha que da borra significa "muito". Ela diz: "estou com um cansaço da borra" ou "estou com uma fome da borra".
Dói tanto escutar isso que nem consigo rir. Dou um sorriso forçado, mas acho que Ruggero consegue perceber que as histórias sobre a filha a quem sou impedida de encontrar estão me despedaçando. Ele para de sorrir, vai
até a pia e lava o copo.
- Está pronta? Faço que sim e desço do balcão. No caminho para casa, ele diz:
- O que vai fazer com as cartas?
- Nada. Respondo de imediato.
- Gosto de escrevê-las, só isso.
- Elas são sobre o quê?
- Sobre tudo. E, às vezes, sobre nada. Dou uma olhada pela janela para que ele não enxergue a verdade no meu rosto. Mas algo dentro de mim me faz querer ser sincera, quero que Ruggero sinta que sou alguém confiável.
Tenho muito o que provar.
- Estou pensando em compilar todas e, no futuro, reuni-las em um livro.
Ele faz uma pausa.
- O final será feliz? Ainda estou olhando pela janela quando respondo: - Vai ser um livro sobre a minha vida, então não acho que isso seja possível.
Ruggero mantém os olhos na pista enquanto pergunta: - Alguma delas fala sobre o que aconteceu na noite em que
morreu? Deixo uma lacuna entre sua pergunta e minha resposta.
- Sim, uma delas.
- Posso ler?
- Não.
Ruggero me lança um olhar rápido. Depois, olha para a frente e liga a seta
para virar na minha rua. Ele para numa vaga do estacionamento e deixa a picape ligada.
Não sei se devo sair imediatamente ou se ainda temos algo a dizer um para o outro. Coloco a mão na maçaneta.
- Obrigada pelo trabalho.
Ruggero pressiona o polegar no volante e assente.
- Eu diria que você fez por onde.
A cozinha não ficava tão organizada
desde que comprei o bar, e olha que você só trabalhou um turno.
É bom ouvir seu elogio. Assimilo-o e depois dou boa-noite a ele.
Por mais que eu queira me virar e olhar para ele depois que saio da picape, permaneço com o rosto virado para a frente. Espero ouvi-lo dando marcha a ré, mas ele não faz isso, então fico achando que ele está me observando enquanto subo até meu apartamento.
Assim que entro em casa, Ivy vem correndo até mim. Pego-a no colo e deixo as luzes desligadas enquanto vou até a janela para dar uma espiada.
Ruggero está parado na picape, fitando meu apartamento. Na mesma hora,
pressiono as costas na parede ao lado da janela. Finalmente escuto seu motor quando ele dá marcha a ré e sai da vaga.
- Ivy. Sussurro, coçando sua cabeça.
- O que é que a gente está fazendo, hein?

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