Ruggero

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Não estacionei na garagem quando cheguei ontem à noite.
April gosta de acordar e olhar pela janela de manhã para conferir que estou em casa, e, quando deixo a picape na garagem, Claudia diz que April fica triste.
Moro na frente deles desde que April tinha oito meses, mas, se eu não contar os anos em que saí desta casa para morar em Denver, tecnicamente morei nela minha vida inteira.
Meus pais não moram aqui há anos, embora os dois estejam dormindo no quarto de hóspedes neste momento.
Eles compraram o trailer quando meu pai se aposentou, e agora viajam pelo país. Comprei a casa deles quando voltei para cá, e então eles se organizaram e partiram. Imaginei que aquilo duraria no máximo um ano, mas agora já faz mais de quatro anos e eles não deram nenhum sinal de que vão desacelerar.
Queria apenas que eles tivessem me avisado antes de chegarem.
Talvez eu devesse instalar um aplicativo de GPS no celular deles, assim eu teria
alguma espécie de alerta no futuro.
Não que eu não goste das visitas deles,
mas seria legal poder me preparar para recebê-los.
É por isso que vou instalar um portão na minha casa nova.
Um dia.
Está tudo lento porque Gaston e eu estamos fazendo sozinhos boa parte do trabalho. Todos os domingos, entre o nascer e o pôr do sol, estou em Cheshire Ridge com Gaston trabalhando na casa. Contratei outras pessoas para a parte mais difícil, mas nós dois completamos sozinhos boa parte da construção.
Após dois anos de domingos trabalhando a casa finalmenteestá começando a tomar forma. Acho que em uns seis meses me mudo para lá.
- Para onde está indo?
Eu me viro quando chego à porta da garagem. Meu pai está parado na frente do quarto de hóspedes. De cueca.
- April tem um jogo de beisebol. Vocês querem ir?
- Não. Estou com muita ressaca para lidar com crianças hoje, e precisamos mesmo voltar para a estrada.
- Vocês já vão?
- A gente volta daqui a algumas semanas. Meu pai me abraça.
- Sua mãe ainda está dormindo, mas eu aviso que você mandou tchau para ela.
- Se vocês me avisassem antes da próxima visita, de repente eu poderia
tirar uma folga no trabalho.
Meu pai balança a cabeça.
- Que nada, a gente gosta é de ver a surpresa na sua cara quando chegamos sem avisar.
Ele entra no banheiro e fecha a porta.
Passo pela garagem e vou até a casa de Diego e Claudia do outro lado da rua.
Espero que April não esteja muito falante, pois minha concentração vai
estar uma merda hoje. Só consigo pensar na garota de ontem e no quanto quero vê-la outra vez.
Será que seria estranho deixar um bilhete na porta dela?
Bato à porta da frente de Diego e Claudia e entro. Entramos tanto nas casas uns dos outros que depois de um certo tempo cansamos de dizer: “Está aberta.”
As portas sempre estão abertas.
Claudia está na cozinha com April, que está sentada no meio da mesa de pernas cruzadas e com uma tigela cheia de ovos no colo. Ela nunca se senta em cadeiras. Está sempre em cima das coisas, como o encosto do sofá, o balcão da cozinha, a mesa da cozinha. Ela gosta de escalar.
- Você ainda está de pijama, A.
Pego a tigela com ovos e aponto para o corredor.
- Vá se vestir, a gente tem que sair.
Ela corre até o quarto para vestir o uniforme de beisebol.
- Achei que a partida fosse às 10h. Diz Claudia.
- Eu teria arrumado ela.
- É às 10h, mas ficamos de levar o Gatorade, então preciso passar no
mercado e depois buscar Gaston na casa dele.
Eu me apoio no balcão e pego uma tangerina. Descasco-a enquanto Claudia liga o lava-louça.
Ela sopra uma mecha de cabelo para afastá-la do rosto.
- Ela está querendo um playground. Diz ela.
- Um daqueles enormes, como o que você tinha no seu quintal. A amiga dela, Nyla, da escola, ganhou um, e você sabe que a gente não consegue negar. Ela vai fazer cinco anos.
- Eu ainda tenho o meu.
- Tem? Onde está?
- Está desmontado, mas posso ajudar Diego a montar. Não deve ser tão difícil.
- Acha que ainda está bom?
- Estava quando eu desmontei.
Não digo que foi por causa de Agus que o desmontei.
Depois que ele morreu, me aborrecia toda vez que o via.
Coloco outro gomo de tangerina na boca e redireciono meus pensamentos.
- Nem acredito que ela já vai fazer cinco anos. Claudia suspira.
- Pois é. Surreal. E injusto.
Diego aparece na cozinha e bagunça meu cabelo como se eu não tivesse quase 30 anos nem fosse oito centímetros mais alto.
- E aí, garoto. Ele estende o braço na minha direção e pega uma das tangerinas.
- Claudia avisou que não vamos conseguir ir ao jogo hoje?
- Ainda não. Diz Claudia. Ela revira os olhos, e sua expressão irritada se volta para mim.
- Minha irmã está no hospital. É uma cirurgia eletiva, ela está bem, mas precisamos passar na casa dela para alimentar os gatos.
- O que ela vai fazer desta vez?
Claudia balança a mão na direção do próprio rosto.
- Alguma coisa nos olhos. Quem é que sabe? Ela é cinco anos mais velha do que eu, mas parece dez anos mais nova.
Diego cobre a boca de Claudia.
- Deixa disso. Você é perfeita.
Claudia ri e afasta a mão dele.
Nunca vi os dois brigarem. Nem mesmo quando Agus era pequeno.
Meus pais encrencam muito um com o outro, e em grande parte é de brincadeira, mas nunca vi Claudia e Diego brigarem desde que os conheci,
vinte anos atrás.
É isso que eu quero. Um dia.
Mas ainda não tenho tempo para isso.
Trabalho demais e parece que, aos poucos, estou chegando ao meu limite.
Se quero ficar com uma garota por tempo o bastante para ter o que Diego e Claudia têm, preciso mudar.
- Rugge! Grita April do quarto dela.
- Vem me ajudar! Ando pelo corredor para ver do que ela está precisando.
Ela está ajoelhada dentro do closet, remexendo nas coisas.
- Não estou achando a outra bota preciso da minha bota. Ela está segurando uma bota de cowboy vermelha e procurando a outra.
- Por que precisa da bota? Você precisa é das suas chuteiras.
- Não quero usar chuteiras hoje. Quero usar minhas botas.
As chuteiras estão do lado da cama, então as pego.
- Não dá para jogar beisebol de bota. Suba aqui na cama que eu te ajudo a pôr as chuteiras. Ela se levanta e arremessa a segunda bota vermelha na cama.
- Achei!
Ela dá uma risadinha, sobe na cama e começa a calçar as botas.
- April. É beisebol. Ninguém usa botas para jogar beisebol.
- Eu uso. Vou usar botas hoje.
- Não, você não pode...Eu me interrompo. Não tenho tempo de discutir com ela, e sei que, quando chegar ao campo e vir todas as outras crianças de chuteira, ela vai me deixar tirar suas botas. Ajudo-a a calçá-las e levo as chuteiras enquanto
a carrego para fora do quarto.
Claudia nos encontra na porta e entrega uma caixinha de suco para April.
- Divirta-se.
Ela beija a bochecha de April e depois seus olhos se voltam para as botas da menina.
- Melhor nem perguntar. Digo enquanto abro a porta da casa.
- Tchau, vovó! Diz April.
Diego está na cozinha, e, quando April não se despede dele, ele vem até nós pisando com força, dramaticamente.
- E o popô? Diego queria ser chamado de vovô quando April começou a falar, mas,
por algum motivo, ela chamava Claudia de vovó e Diego de popô, e era tão engraçado que eu e Claudia repetimos a palavra até ela pegar.
- Tchau, popô. Fala April, rindo.
- Talvez a gente não volte antes de vocês Diz Claudia.
- Você se incomoda em ficar com ela se a gente ainda não estiver aqui?
Não sei por que Claudia sempre me pergunta isso. Nunca respondi que não. Nunca vou responder que não.
- Sem pressa. Almoço com ela em algum lugar. Ponho April no chão quando saímos da casa.
- McDonald’s! Diz ela.
- Não quero McDonald’s. Respondo enquanto atravessamos a rua na direção da minha picape.
- Drive-thru do McDonald’s!
Abro a porta de trás da picape e a ajudo a se sentar no assento de elevação.
- Que tal comida mexicana?
- Nada disso. McDonald’s.
- E chinesa? Faz tempo que não comemos comida chinesa.
- McDonald’s.
- Vamos fazer o seguinte: se você calçar as chuteiras quando chegarmos ao jogo, a gente come McDonald’s.
Afivelo o cinto de segurança dela. Ela balança a cabeça.
- Não, quero ficar de bota. E nem quero almoçar mesmo... estou cheia.
- Na hora do almoço você vai estar com fome.
- Não vou, comi um dragão. Vou ficar cheia pra sempre.
Às vezes me preocupo com todas essas histórias que April nos conta, mas ela é tão convincente que fico mais impressionado do que apreensivo.
Não sei com que idade a criança deve conseguir saber a diferença entre mentir e usar a imaginação, mas vou deixar isso para Cláudia e Diego. Não quero reprimir a parte dela de que mais gosto.
Levo a picape até a rua.
- Você comeu um dragão? Um dragão inteiro?
- É, mas foi um dragão bebê. É por isso que ele coube na minha barriga.
- Onde você achou um dragão bebê?
- No Walmart.
- O Walmart vende dragões bebês?
Ela me explica que o Walmart vende dragões bebês, mas que é preciso ter um cupom especial e que somente crianças podem comê-los. Quando chegamos à casa de Gaston, ela já está me explicando como eles devem ser cozinhados.
- Com sal e xampu. Diz ela.
- A gente não pode comer xampu.
- Mas a gente não come o xampu, ele só é usado para cozinhar o dragão.
- Ah, tá. Como eu sou besta.
Gaston entra na picape e parece tão entusiasmado quanto alguém indo para um enterro. Ele odeia os dias de beisebol e nunca gostou de crianças.
Ele só me ajuda a treiná-las porque nenhum dos outros pais topou. E, como
ele é meu funcionário, incluí o treino como parte do seu trabalho.
Ele é a única pessoa que conheço que é paga para participar de uma escolinha de beisebol, mas não parece se sentir culpado por isso.
- Oi, Gaston. Cantarola April do banco de trás.
- Só tomei uma xícara de café. Não fale comigo.
Gaston tem 27 anos, mas ele e April se encontraram no meio do caminho e os dois se comportam como se tivessem 12 anos pela maneira como se tratam com amor e ódio ao mesmo tempo.
April começa a dar tapinhas no encosto de cabeça do banco dele.
- Acorda aí, acorda aí, acorda aí.
Gaston vira a cabeça até me encarar.
- Todas essas bobagens que você faz para ajudar as criancinhas no seu tempo livre não vão te beneficiar em nada na vida após a morte, pois a religião é uma construção social criada por sociedades que queriam regular o povo, então o paraíso é um conceito. A gente podia estar dormindo neste exato momento.
- Caramba. E antes do café, como é que você fica? Saio da entrada da casa dele.
- Se o paraíso é um conceito, o que é o inferno?
- Um campo de beisebol.

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