Ruggero

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Saímos do estacionamento e, depois de menos de um quilômetro, Karol murmura algo como: - Pare o carro.
Viro-me para ela, que está olhando pelo vidro. Como não ligo a seta, ela
repete: - Pare o carro. Exige.
- Em dois minutos você vai estar em casa.
Ela chuta meu painel.
- Pare o carro!
Não digo mais nada. Obedeço. Dou a seta e paro na beira da pista.
Ela pega a ecobag, sai da picape e bate a porta. Começa a andar na direção do seu prédio. Quando já está a alguns metros de distância, na frente da picape, ponho o câmbio no ponto morto e a acompanho,
abaixando o vidro.
- Karol. Volte para o carro. Ela continua andando.
- Você disse para ela ir embora! Viu que eu estava chegando e disse para ela ir embora! Por que continua fazendo isso comigo? Continuo dirigindo no ritmo em que ela está andando, até ela finalmente se virar e me encarar pela janela.
- Por quê? Pergunta ela.
Pressiono o freio até ficarmos próximos. Minhas mãos estão começando a tremer. Talvez pela adrenalina, talvez pela culpa.
Talvez pela raiva.
Coloco o câmbio no ponto morto novamente, pois me parece que ela está
pronta para discutir a questão.
- Achou mesmo que ia confrontar Cláudia no estacionamento de um
mercado?
- Bem, tentei fazer isso na casa deles, mas nós dois sabemos qual foi o resultado.
Balanço a cabeça.
Não estou me referindo ao local.
Eu nem sei a que estou me referindo. Tento raciocinar.
Estou confuso, porque acho que talvez ela tenha razão.
Da primeira vez ela tentou abordá- los em paz, e também a detive.
- Eles não são fortes o bastante para lidar com sua presença aqui, mesmo que você não tenha vindo para tomá-la deles.
Eles não são fortes o bastante para compartilhá-la com você.
Os dois proporcionam uma vida boa
para April, Karol.
Ela está feliz e em segurança. Será que isso não é o suficiente?
Karol parece estar prendendo a respiração, mas está ofegante.
Ela me encara por um instante e depois vai até a parte de trás da picape para que eu não veja seu rosto.
Fica parada por um momento, mas depois vai até a grama no acostamento da pista e se senta. Ela aproxima os joelhos do peito, abraça-os e fica encarando um descampado.
Não sei o que ela está fazendo, nem se precisa de tempo para pensar.
Deixo-a uns minutos sozinha, mas, como ela não se move nem se levanta, acabo saindo da picape.
Quando me aproximo dela, não digo nada. Sento-me em silêncio ao seu lado.
O trânsito e o mundo continuam se movendo atrás de nós, mas na nossa
frente há um grande terreno baldio, então ficamos olhando para a frente, e
não um para o outro.
Ela acaba descendo o olhar para o chão e arrancando uma florzinha amarela da grama. Mexe-a entre os dedos, e passo a observá-la. Ela inspira lentamente, mas não vira o olhar na minha direção quando expira e começa a falar.
- As outras mães me disseram como seria. Diz ela.
- Elas me contaram que eu seria levada até o hospital para o parto e que eu teria dois dias com ela. Dois dias inteiros, só eu e ela. Uma lágrima escorre por sua
bochecha.
- Nem sei dizer o quanto ansiei por aqueles dois dias. Eu não conseguia pensar em mais nada.
Mas ela nasceu prematura...
Não sei se você sabe, mas ela nasceu seis semanas antes do previsto.
Seus pulmões estavam... Karol expira pela boca.
- Logo após o parto, ela foi transferida para a UTI Neonatal de outro hospital. Passei meus dois dias sozinha numa sala de recuperação com um guarda armado me vigiando. E quando meus dois dias acabaram, fui mandada de volta à prisão. Não pude segurá-la no colo.
Não pude nem sequer olhar nos olhos da bebê que eu e Agus concebemos.
- Karol...
- Não. O que quer que você esteja prestes a dizer, nem comece.
Acredite em mim, eu estaria mentindo se dissesse que cheguei aqui sem ter a esperança ridícula de que eu seria bem recebida na vida dela e de que até me dariam algum papel nesse contexto.
Mas também sei qual é o lugar de April, então qualquer coisa me deixaria grata. Eu ficaria muito grata só de poder finalmente olhar para ela, mesmo que isso fosse tudo que me permitissem fazer. Quer você ou os pais de Agustin achem que eu mereça isso ou não.
Fecho os olhos, porque sua voz já está sofrida o bastante.
Olhar para ela e ver a angústia no seu rosto enquanto ela fala só piora tudo.
- Sou muito grata a eles. Diz ela.
- Você não faz ideia. Durante toda a gravidez, não precisei me preocupar em nenhum momento com relação às pessoas que a criariam.
Eram as mesmas pessoas que tinham criado Agus, e ele era perfeito.
Ela fica em silêncio por alguns segundos, então abro os olhos.
Ela está me encarando quando balança a cabeça.
- Não sou uma pessoa ruim, Ruggero.
Sua voz está consternada.
- Não estou aqui por achar que a mereço. Tudo que eu quero é vê-la. É tudo que eu quero. Só isso. Ela usa a camiseta para secar os olhos e depois continua.
- Às vezes, fico me perguntando o que Agus pensaria se pudesse nos ver.
Fico torcendo para que não exista nenhuma vida após a morte, porque, se existir, provavelmente ele seria a única pessoa triste no céu.
Suas palavras me atingem como um soco no estômago, pois fico morrendo de medo de que ela tenha razão. Esse tem sido o meu maior receio desde que ela voltou e que comecei a enxergá-la como a mulher por quem Agus estava apaixonado, e não como a mulher que o deixou sozinho até morrer.
Me levanto enquanto Karol continua sentada na grama.
Vou até a picape e abro o console.
Pego meu celular e volto com ele para perto de Karol.
Me sento novamente ao seu lado, abro o aplicativo de fotos e depois escolho a pasta onde salvo todos os vídeos que faço de April. Abro o mais recente, que filmei durante o jantar de ontem, aperto play e entrego o aparelho a Karol.
Eu jamais teria imaginado como seria uma mãe ver a filha pela primeira
vez. Ver April na tela deixa Karol sem fôlego. Ela põe a mão na boca e começa a chorar, tanto que precisa apoiar o celular nas pernas para poder enxugar as lágrimas com a camiseta.
Karol transforma-se numa pessoa diferente bem diante dos meus olhos.
É como se eu estivesse testemunhando o momento em que ela se torna mãe, e talvez essa seja a coisa mais bonita que já tenha visto.
Estou me sentindo uma porra de um monstro por não tê-la ajudado a vivenciar este momento antes.
Me desculpe, Agus.
Ela assistiu a quatro vídeos sentada na grama do acostamento da pista.
Chorou o tempo inteiro, mas também sorriu bastante.
E ela ria sempre que April falava.
Deixei-a segurar meu celular e continuar assistindo a mais vídeos enquanto eu a levava para casa na picape.
Subi até seu apartamento, porque teria me sentido péssimo se tivesse pedido meu celular de volta, então já faz quase uma hora que ela está assistindo aos vídeos. Suas emoções estão um caos.
Ela gargalha, chora, se alegra, se entristece.
Não faço ideia de como vou pegar meu celular de volta. Nem sei se quero.
Faz tanto tempo que estou no apartamento dela que a gatinha de Karol
acabou adormecendo no meu colo.
Karol está em uma ponta do sofá e eu
estou na outra, apenas observando-a assistir aos vídeos de April, orgulhoso
como um pai, pois sei que April é saudável, eloquente, engraçada e feliz, e
é gostoso ver Karol perceber tudo isso sobre sua filha.
Mas, ao mesmo tempo, parece que estou traindo duas das pessoas mais importantes da minha vida.
Se Diego e Claudia soubessem que neste
momento estou aqui, mostrando a Karol vídeos da menina que os dois criaram, provavelmente nunca mais falariam comigo.
E eu os entenderia.
Não existe nenhuma maneira de enfrentar esta situação sem sentir que
estou traindo alguém.
Estou traindo Karol por não deixá-la ver April.
Estou traindo Diego e Claudia por deixar Karol ver como April é.
Estou traindo até mesmo Agustin, embora ainda não saiba exatamente de que maneira. Ainda estou tentando entender de onde estão vindo todos esses
sentimentos de culpa.
- Ela é tão feliz. Diz Karol.
Faço que sim.
- É, sim. Ela é muito feliz.
Karol me olha, enxugando os olhos com um lenço amassado que lhe entreguei na picape.
- Ela faz perguntas sobre mim?
- Não especificamente, mas está começando a se perguntar de onde ela
veio. No último fim de semana, ela me perguntou se tinha crescido numa árvore ou num ovo. Karol sorri.
- Ela ainda é pequena demais para entender sobre dinâmicas familiares.
Ela tem Diego, Claudia e eu, então no momento não sei se ela de fato sente que está faltando alguém.
Não sei se era isso o que você queria escutar. É apenas a verdade.
Karol balança a cabeça.
- Tudo bem. Na verdade, é bom saber que ela ainda não percebeu que eu devia estar na vida dela.
Ela assiste a mais um vídeo e depois me
entrega o aparelho, relutante.
Levanta-se do sofá e vai até o banheiro. -Por favor, não vá embora ainda.
Faço que sim, garantindo que não vou a lugar nenhum.
Quando ela fecha a porta do banheiro, tiro a gatinha do colo e me levanto. Preciso tomar alguma coisa. As últimas duas horas me deram a sensação de que estou desidratado, apesar de ter sido Karol que chorou.
Abro sua geladeira, mas está vazia. Completamente vazia.
Abro o freezer e também está vazio.
Quando ela sai do banheiro, estou dando uma olhada nos seus armários sem nada dentro. Estão bem vazios, tanto quanto seu apartamento.
- Ainda não tenho nada. Desculpe.
Ela parece envergonhada ao dizer isso. -É que... gastei tudo o que tinha com a mudança para cá. Vou receber em breve, e depois quero me mudar para algum lugar melhor, vou comprar um celular e...
Ergo a mão quando percebo que ela acha que estou julgando sua capacidade de se sustentar. Ou talvez de sustentar April.
- Karol, está tudo bem.
Admiro a determinação que trouxe você até aqui, mas precisa comer.
Guardo o celular no bolso e vou até a porta.
- Vamos. Eu pago seu jantar.

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