Karol

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Nunca vi uma foto de April.
Não sei se ela se parece comigo ou com
Agus. Será que seus olhos são verdes ou castanhos? E o sorriso dela, é sincero como o do pai? Será que ela ri como eu?
Será que ela é feliz?
Esse é meu único desejo: que ela seja feliz.
Confio totalmente em Claudia e Diego. Sei que eles amavam Agus, e está na cara que amam April.
Eles a amavam antes mesmo de ela nascer.
Os dois começaram a disputar a guarda dela no mesmo dia em que contei que estava grávida. O feto não estava nem com os pulmões desenvolvidos, mas eles já lutavam para respirar pela primeira vez.
Perdi a disputa pela guarda antes mesmo de April nascer. Uma mãe não tem muitos direitos quando é condenada a passar vários anos na prisão.
O juiz disse que, devido à natureza da nossa situação e ao que eu causara à família de Agus ele não poderia, em sã consciência, atender ao meu pedido de ter direito de visita. Tampouco obrigaria os pais de Agus a preservar uma relação entre mim e minha filha enquanto eu estivesse presa.
Disseram que eu poderia requerer meus direitos quando fosse solta, mas, como eles foram suspensos, acho que não tem muito que eu possa fazer.
Entre o nascimento de April e a minha soltura, quase cinco anos depois, houve pouca coisa que alguém pudesse, ou quisesse, fazer por mim.
Tudo que tenho é uma esperança intangível à qual tento me agarrar com
mãozinhas de criança.

Eu estava rezando para que os pais de Agus precisassem apenas de um tempo. Presumi, ignorantemente, que eles acabariam percebendo que preciso participar da vida de April.
Não tive muito o que fazer enquanto estive isolada, mas, agora que estou solta, pensei bastante em como devo agir. Não faço ideia do que esperar, não sei nem que tipo de pessoas eles são.
Só os vi uma vez quando Agus e eu estávamos namorando, e o encontro não correu muito bem.
Tentei encontrá-los nas redes sociais, mas seus perfis são extremamente fechados.
Não consegui encontrar nenhuma foto de  April na internet. Até pesquisei os nomes de todos os amigos de Agus de quem eu me recordava, mas não consegui me lembrar de muitos, e todos os perfis deles eram fechados.
Sei muito pouco da vida de Agus antes de ele me conhecer, e não ficamos juntos por tempo o bastante para que eu realmente conhecesse seus amigos e sua família. Foram apenas seis meses dos vinte e dois anos que ele viveu.
Por que todas as pessoas da vida dele são tão inacessíveis? É por minha causa? Será que elas têm medo de que justamente isto aconteça?
De que eu apareça? De que eu alimente a esperança de participar da vida da minha filha?
Sei que os dois me odeiam, e eles têm todo o direito, mas uma parte de mim tem convivido com eles nos últimos quatro anos por meio de April.
Minha esperança é que eles tenham conseguido me perdoar pelo menos um
pouco em razão da minha filha.
O tempo cura todas as feridas, não é mesmo?
Mas não os deixei com uma simples ferida. Deixei-os com uma
fatalidade. Uma fatalidade que, de tão arrasadora, talvez nunca seja
perdoada. Mas, ainda assim, é difícil não se prender à esperança quando
tudo o que consigo fazer é ansiar por este momento.
É algo que vai me completar ou me destruir. Não tem meio-termo.
Mais quatro minutos para eu descobrir.
Estou mais nervosa agora do que no tribunal, cinco anos atrás.
Aperto com força a estrela-do-mar de borracha na minha mão.
Era o único brinquedo à venda no posto de gasolina ao lado do meu apartamento. Eu poderia ter pedido para o taxista passar no Target ou no Walmart, mas
ambos ficam na direção oposta do local onde espero que April ainda more, e não tenho dinheiro para uma corrida tão longa.

Hoje, depois de ter sido contratada para trabalhar no mercado, fui a pé para casa e tirei um cochilo.
Não queria chegar lá quando April não
estivesse na casa de Claudia e Diego, e, se Lina estiver certa e Ruggero não tiver filhos, faz sentido supor que a menina que ele treina na escolinha de beisebol seja minha filha.
E, julgando pela quantidade de Gatorade que ele comprou, ele devia estar se preparando para um longo dia com muitos times. Seguindo essa linha de raciocínio, isso quer dizer que April só
voltaria horas depois para casa.
Esperei o máximo possível.
Sei que o bar abre às 17h, o que significa
que Ruggero provavelmente vai levar April para casa antes disso, e não quero de jeito nenhum que ele esteja presente quando eu aparecer, então programei a corrida de táxi pensando em chegar lá às 17h15.
Não quero que seja mais tarde do que isso, pois não quero chegar durante o jantar nem depois da hora dela de dormir.
Quero fazer tudo do jeito certo; nada que possa deixar Diego e Claudia se sentindo mais ameaçados com a minha presença do que provavelmente já irão se sentir.
Não quero que eles me peçam que vá embora antes mesmo que eu possa
argumentar a meu favor.
Em um mundo perfeito, eles abririam para mim a porta de casa e permitiriam o meu reencontro com a filha que nunca segurei nos braços.
Em um mundo perfeito... o filho deles ainda estaria vivo.
O que será que verei nos olhos deles quando os dois se depararem comigo na porta de casa? Choque? Ódio?
O quanto será que Claudia me despreza?
Às vezes, tento me imaginar no lugar dela.
Tento imaginar o ódio que ela sente por mim, como as coisas devem ser do seu ponto de vista.
De vez em quando, eu me deito na cama, fecho os olhos e tento justificar todas as razões pelas quais ela está impedindo que eu conheça minha filha... a fim de que eu não a odeie também.
Eu penso: Karol, imagine que você é Claudia.
Imagine que você tem um filho.
Um lindo rapaz que você ama mais do que a própria vida, mais do que qualquer vida após a morte.
E ele é bonito e bem-sucedido. Mais importante ainda, ele é bondoso.
Todos lhe dizem isso. Os outros pais queriam que os filhos deles fossem mais parecidos com o seu. Você sorri porque se orgulha dele.
Você se orgulha bastante, mesmo quando ele traz uma namorada nova para casa, aquela que você ouviu gemer alto demais no meio da noite.
Aquela que você viu observando a sala enquanto todo mundo rezava antes do jantar. Aquela que você viu fumando às 23h no quintal, mas não disse nada; você simplesmente esperava que seu filho perfeito fosse perder logo o interesse por ela.
Imagine que você recebe uma ligação do colega de quarto do seu filho, perguntando se você sabe onde ele está. Ele devia ter chegado ao trabalho mais cedo naquele dia, mas, por algum motivo, não apareceu.
Imagine sua preocupação, porque seu filho costuma aparecer.
Seu filho sempre aparece.
Imagine que ele não atende quando você liga para saber por que ele não apareceu.
Imagine seu pânico à medida que as horas passam.
Normalmente você consegue sentir a presença dele, mas hoje não consegue; tudo o que você sente é medo e nenhum orgulho.
Imagine que você começa a fazer ligações. Liga para a universidade, para o chefe dele, e ligaria até para a namorada de quem não gosta muito caso tivesse o número dela.
Imagine que você escuta a porta de um carro bater e respira aliviada, só para cair no chão ao ver a polícia na sua porta.
Imagine escutar coisas como
“sinto muito”, “acidente de carro” e “não
sobreviveu”.
Imagine-se não morrendo naquele momento.
Imagine-se sendo obrigada a seguir em frente, a viver aquela noite terrível, a acordar no dia seguinte, a ter alguém lhe pedindo que identifique o corpo dele.
O corpo dele sem vida.
Um corpo que você criou, ao qual deu vida, que cresceu em seu interior, que você ensinou a andar e a correr e a ser gentil com os outros.
Imagine-se tocando no rosto gelado dele, com suas lágrimas pingando no saco plástico dentro do qual ele se encontra, com seu grito preso na garganta, silencioso como os gritos que já deu em pesadelos.
E você continua vivendo. De alguma maneira.
De alguma maneira, você segue em frente sem a vida que criou.
Você sente o luto. Está fraca demais até mesmo para planejar o funeral dele.
Fica se perguntando por que seu filho perfeito, seu filho bondoso, seria tão
descuidado.
Você está devastada, mas seu coração continua batendo sem parar, uma
recordação constante de todos os batimentos cardíacos que seu filho jamais vai poder sentir.Imagine que a situação ainda piora.
Imagine só.
Imagine que, quando acha que está no fundo do poço, você descobre um novo penhasco do qual termina caindo ao ouvir que nem era seu filho que estava dirigindo o carro que seguia rápido demais pelo cascalho.
Imagine ouvir que o acidente foi culpa dela. Da garota que fumou o cigarro e não fechou os olhos durante a oração antes do jantar, e que gemeu alto demais em sua casa silenciosa.
Imagine ouvir o quanto ela foi descuidada e cruel com a vida que
cresceu dentro de você.
Imagine ouvir que ela o abandonou lá. “Fugiu”, disseram.
Imagine ouvir que ela foi encontrada no dia seguinte, na própria cama, de ressaca, coberta de lama e de cascalho e do sangue do seu filho.
Imagine ouvir que seu filho perfeito estava com a pulsação perfeita e poderia ter tido uma vida perfeita caso tivesse sofrido o acidente com uma moça perfeita.
Imagine descobrir que as coisas não precisavam ter acontecido daquele
jeito.
Ele nem sequer estava morto.
Estimaram que ele continuou vivo por
mais seis horas. Arrastou-se por vários metros, procurando por você.
Precisando da sua ajuda. Sangrando. Morrendo. Por horas.
Imagine descobrir que a garota que gemeu alto demais e fumou o cigarro
no seu quintal às 23h poderia tê-lo salvado.
Uma ligação que ela não fez.
Três números que ela jamais discou.
Cinco anos foi o tempo que ela ficou presa pela vida dele, como se você não o houvesse criado por dezoito anos nem o observado se virar bem sozinho por quatro; e talvez você tivesse mais cinquenta anos ao lado dele caso ela não os houvesse encurtado.
Imagine ter de seguir em frente depois disso.
Agora imagine essa garota... a garota pela qual você esperava que seu filho perdesse o interesse... imagine que, depois de todo o sofrimento que ela lhe causou, ela decidisse reaparecer na sua vida.
Imagine que ela tem a cara de pau de bater à sua porta.
Imagine que ela sorri para você.
Pergunta sobre a filha dela.
Espera fazer parte da linda vidinha que seu filho milagrosamente deixou.
Imagine só. Imagine ter de olhar nos olhos da garota que deixou seu filho rastejar por vários metros até morrer enquanto ela tirava um cochilo na
própria cama.
Imagine o que você lhe diria depois de tanto tempo.
Imagine todas as maneiras como você poderia feri-la de volta.
É fácil entender por que Claudia me odeia.
Quanto mais perto chego da casa, mais eu mesma começo a me odiar.
Nem sei por que estou aqui sem antes ter me preparado melhor.
Não vai ser fácil, e, mesmo que eu esteja me preparando para este momento há
cinco anos, nunca cheguei a realmente ensaiá-lo.
O taxista entra na antiga rua de Agus. Parece que estou afundando no banco de trás, sentindo um peso diferente de tudo que já senti na vida.
Quando vejo a casa deles, meu medo se torna audível. Minha garganta faz um barulho que me surpreende, mas estou me esforçando ao máximo para não chorar.
Pode ser que April esteja dentro daquela casa neste exato momento.
Estou prestes a atravessar um jardim em que April brincou.
Estou prestes a bater a uma porta que April abriu.
- Deu doze dólares. Diz o taxista.
Tiro quinze dólares do bolso e lhe digo para ficar com o troco.
Quando saio do carro, parece que estou flutuando. Que sensação esquisita.
Dou uma olhada no banco de trás do táxi para ter certeza de que não estou mais
sentada lá.
Penso em pedir que o taxista espere, mas assim eu estaria admitindo a derrota de antemão. Depois vejo como volto para casa.
Agora estou me atendo ao sonho impossível de que só vão me pedir que eu vá embora daqui a algumas horas.
O taxista vai embora assim que fecho a porta do carro, e fico parada do outro lado da rua.
A essa hora, o sol ainda está forte no céu.
Eu devia ter esperado até anoitecer. Desse jeito estou me sentindo um alvo, vulnerável ao que quer que possa me atingir.
Quero me esconder.
Preciso de mais tempo.
Ainda nem ensaiei o que vou dizer. Penso nisso constantemente, mas
nunca pratiquei em voz alta.
Fica cada vez mais difícil controlar minha respiração.
Ponho as mãos na parte de trás da cabeça; inspiro e expiro, inspiro e expiro.
As cortinas da sala de estar não estão abertas, então acho que eles ainda não perceberam a minha presença.
Me sento no meio-fio e fico ali por um
instante até me recompor antes de ir até lá. Sinto como se meus pensamentos estivessem jogados aos meus pés, como se eu precisasse pegá- los um a um e ordená-los.
1. Pedir desculpas;
2. Expressar minha gratidão;
3. Implorar para que eles se compadeçam de mim.

Eu devia ter vestido uma roupa melhor. Estou de calça jeans e com a mesma camiseta do Mountain Dew de ontem. Era a roupa mais limpa que eu tinha, mas, agora que parei para me olhar, sinto vontade de chorar.
Não quero conhecer minha filha usando uma camiseta com estampa de refrigerante.
Como posso esperar que Diego e Claudia me levem a sério se nem mesmo me visto a sério?
Não devia ter vindo até aqui na pressa. Devia ter pensado melhor antes.
Estou começando a entrar em pânico.
Queria ter um amigo.
- Ana.

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