Karol

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Eu estava envergonhada e triste, então ninguém da minha vida antes de eu te conhecer sabia o que eu havia feito.
E como você tinha falecido e sua família inteira me odiava, ninguém foi me visitar.
Escolheram um defensor público para mim, mas não tinha ninguém para pagar minha fiança.
Eu nem teria para onde ir se pudesse pagá-la. Me senti à vontade dentro da cela, então não me incomodei.
Se eu não podia estar com você no seu carro, o único lugar onde eu queria estar era naquela cela, sozinha, onde poderia
recusar a comida que me davam e torcer para que um dia meu coração parasse de bater como achei que o seu tinha parado naquela noite.
Acontece que seu coração ainda estava batendo. Tinha sido apenas seu braço que morrera.
Eu poderia contar os detalhes horrendos de como seu braço foi tão terrivelmente esmagado e estraçalhado no acidente que o fluxo sanguíneo foi completamente interrompido e que foi por isso que toquei em você e achei que estivesse morto e que, apesar de tudo isso, você ainda recobrou a consciência e saiu do carro e tentou chamar o socorro que nunca levei para você.
Eu teria percebido isso se tivesse ficado mais tempo com você ou tentado mais. Se eu não tivesse entrado em pânico, nem saído correndo, nem deixado a adrenalina tomar meu corpo a ponto de me tirar dos limites da realidade.
Se eu tivesse conseguido ficar tão calma quanto você sempre era, você ainda estaria vivo. Provavelmente estaríamos criando juntos a filha que você nem chegou a saber que geramos. Provavelmente já teríamos dois filhos a esta altura, ou talvez três, e acho que eu
estaria trabalhando como professora, ou enfermeira, ou escritora, ou alguma outra coisa que você certamente teria me dado forças para perceber que eu era capaz de fazer.
Meu Deus, eu sinto a sua falta.
Sinto tanto a sua falta, mesmo que meus olhos nunca tenham expressado isso de uma maneira que fosse satisfazer os outros. Às vezes me pergunto se meu estado mental não influenciou minha pena.
Eu estava vazia por dentro, e tenho certeza de que esse vazio era perceptível nos meus olhos sempre que eu tinha de olhar para alguém.
Não me importei com a primeira audiência duas semanas após sua morte. O defensor público disse que iria me defender, que tudo que eu precisava fazer era me declarar inocente e que ele provaria que eu não estava em pleno gozo das minhas faculdades mentais
naquela noite e que minhas ações não foram propositais e que eu estava muito, muito, muito, muito, muito arrependida.
Mas não me importei com as sugestões do defensor.
Eu queria ser presa.
Não queria voltar para um mundo onde eu precisaria me deparar com carros e com estradas de cascalho, ou escutar Coldplay no rádio, ou pensar em todas as coisas que eu teria que fazer sem você.

Quando paro para pensar agora, percebo que aquilo era um estado depressivo profundo e perigoso, mas acho que ninguém percebeu isso, ou talvez ninguém se importasse mesmo.
Todos eram #TimeAgustin, como se a gente nem fosse do mesmo time.
Todos queriam justiça, e infelizmente justiça e empatia não cabiam naquele
tribunal ao mesmo tempo.
Mas o que é curioso é que eu estava do lado deles.
Eu queria justiça por eles.
Eu me compadecia deles.
Da sua mãe, do seu pai, de todas as pessoas da sua vida que lotaram aquele tribunal.
Eu me declarei culpada, para o desespero do meu defensor.
Era necessário.
Quando eles começaram a contar as coisas pelas quais você passou depois que te deixei naquela noite, percebi que eu preferiria morrer a enfrentar um julgamento e ouvir os detalhes.
Era tudo horrível demais, como se eu estivesse vivendo uma história de terror, e não minha própria vida.
Me desculpe, Agustin.
Consegui dessintonizar tudo aquilo apenas repetindo incessantemente essa frase na cabeça.
Me desculpe, Agus. Me desculpe, Agus. Me desculpe, Agus.
Marcaram outra audiência para a fixação da pena, e foi em algum momento entre essas duas audiências que percebi que não menstruava há um tempo.
Pensei que meu ciclo tinha se bagunçado, então não contei para ninguém.
Caso eu tivesse descoberto antes que
parte de você estava crescendo dentro de mim, tenho certeza de que eu teria encontrado disposição para ir a julgamento e para lutar por mim mesma. Para lutar pela nossa filha.
Quando chegou a data da fixação da pena, tentei não ouvir nada enquanto sua mãe lia sua declaração, mas cada palavra que ela falou ainda está cravada nos meus ossos.
Fiquei pensando no que você me contou enquanto me carregava nas costas naquela noite na sua casa, que os dois queriam ter mais filhos, mas que você tinha sido o milagre deles.
Naquele momento, só consegui pensar nisso. Eu tinha matado o milagre deles, e agora eles não tinham nenhum filho, e era tudo minha culpa.
Eu tinha planejado fazer minha declaração, mas estava fraca e arrasada demais, então quando chegou a hora de me levantar e falar, não consegui. Fisicamente, emocionalmente, mentalmente.
Eu estava grudada naquela cadeira, mas tentei me levantar.
Meu defensor agarrou meu braço para que eu não caísse e depois acho que ele leu alguma coisa em voz alta por mim, não sei. Ainda não sei o que aconteceu no tribunal naquele dia, pois foi muito parecido com aquela noite.
Era um pesadelo que eu estava vendo acontecer a distância.
Minha visão estava limitada.
Eu sabia que havia pessoas ao meu redor e sabia que o juiz estava falando, mas meu cérebro estava tão exausto que eu não conseguia compreender o que ninguém dizia. Não reagi nem mesmo quando o juiz proferiu minha sentença, pois não consegui assimilá-la.
Foi somente mais tarde, depois que me
colocaram no soro por causa da desidratação, que descobri que eu tinha sido condenada a sete anos de prisão, com a possibilidade de liberdade condicional antes.
“Sete anos”, lembro de ter pensado.
“Que absurdo. Deveria ser bem mais.”
Tento não pensar no que você deve ter vivenciado no carro depois que fui embora.
O que será que você pensou de mim? Achou que eu tinha sido jogada para fora do carro? Você me procurou? Ou sabia
que eu tinha te deixado sozinho?
É o tempo que você passou sozinho naquela noite que assombra todos nós, pois jamais vamos saber o que você viveu. O que você pensou.
Quem você chamou.
Como foram seus últimos minutos.
Não consigo imaginar uma maneira mais dolorosa de obrigar seus pais a viverem o resto da vida. Às vezes me pergunto se não é por isso que April está aqui.
Talvez April tenha sido sua maneira de garantir que seus pais ficariam bem.
Porém, ao mesmo tempo, não ter April na minha vida significaria que essa é sua maneira de me punir.
Tudo bem.
Eu mereço.
Planejo lutar por ela, mas sei que mereço isso.
Todas as manhãs, eu acordo e peço desculpas em silêncio.
A você, a seus pais, a April.
Ao longo do dia, silenciosamente agradeço aos seus pais por criarem nossa filha, já que nós dois não podemos fazer
isso. E todas as noites peço desculpas outra vez antes de dormir.
Me desculpe.
Obrigada.
Me desculpe.
Esse é o meu dia que se repete todos os dias.
Me desculpe.
Obrigada.
Me desculpe.
Minha pena não foi justa, considerando a maneira como você morreu.
A eternidade não seria uma pena justa. Mas espero que sua família saiba que minhas ações naquela noite não se basearam em egoísmo.
Foram o horror, o choque e o sofrimento e a confusão e o terror que me afastaram de você naquela noite.
Mas nunca egoísmo.
Não sou uma pessoa má, e sei que você sabe disso, onde quer que esteja.
E sei que você me perdoa.
É quem você é.
Só espero que um dia nossa filha também me perdoe.
E seus pais também.
Quem sabe assim, por algum milagre, eu não consiga começar a me perdoar.
Até então, amo você.
Sinto sua falta.
Me desculpe.
Obrigada.
Me desculpe.
Obrigada.
Me desculpe.
E de novo...

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