Karol

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Já passei em seis lugares diferentes atrás de um emprego, e ainda não são nem 10h. Foi a mesma coisa em todos eles. Alguém me entregou um formulário, perguntou sobre a minha experiência, fui obrigada a dizer que não tinha nenhuma. Fui obrigada a explicar o porquê.
Então a pessoa se desculpa, mas não antes de me olhar dos pés à cabeça.
Sei o que ela está pensando.
É a mesma coisa que Ruth, a proprietária do meu apartamento, disse ao me ver pela primeira vez.
“Não achava que você fosse ser assim.”
As pessoas acham que as mulheres que já foram presas têm uma aparência específica. Que nos comportamos de uma maneira específica.
Mas somos mães, esposas, filhas, humanas.
E tudo o que queremos é uma única oportunidade, cacete.
Só uma.
O sétimo lugar onde tento é um mercado. Fica um pouco mais longe do meu apartamento do que eu gostaria, quase quatro quilômetros de distância, mas já esgotei todas as outras opções entre este mercado e o meu prédio.
Estou suada quando entro no estabelecimento, então vou ao banheiro
para jogar uma água no rosto.
Estou lavando as mãos na pia quando uma mulher baixinha de cabelos pretos e brilhantes entra.
Ela não entra na cabine, apenas se recosta na parede e fecha os olhos.
Está usando um crachá com o nome dela: Lina.
Ao abrir os olhos, ela percebe que estou encarando seus sapatos.
É um par de mocassins com contas brancas e vermelhas formando um círculo em cima.
- Curtiu? Pergunta ela, erguendo o pé e o inclinando de um lado a outro.
- Curti. São lindos.
- É minha avó quem faz. Eles pedem que a gente use tênis aqui, mas o gerente geral nunca falou nada dos meus sapatos. Acho que ele tem medo de mim.
Olho para os meus tênis enlameados. Dou um passo para trás, horrorizada. Não percebi que estava andando por aí com sapatos tão sujos.
Não posso me candidatar para um emprego desse jeito.
Tiro um deles e começo a lavá-lo na pia.
- Estou me escondendo. Diz a mulher.
- Não costumo ficar de bobeira em banheiros, mas tem uma senhora no mercado que sempre reclama de tudo, e, francamente, não estou a fim de lidar com as bobagens dela hoje. Tenho uma filha de dois anos e ela não pregou os olhos esta noite, e eu queria muito ter avisado que não ia conseguir vir por estar doente, mas sou gerente de turno e gerentes de turno não faltam por causa
de doença. A gente vem.
- E se esconde no banheiro. Ela sorri.
- Exatamente.
Troco de sapato e começo a lavar o outro. Sinto um nó na garganta ao dizer:
- Vocês estão contratando? Estou atrás de um emprego.
- Estamos, mas não acho que seja o tipo de trabalho que te interessaria.
Ela não deve ter percebido o desespero estampado no meu rosto.
- É para qual vaga?
- Empacotador. Não é tempo integral, mas costumamos deixar essas vagas abertas para adolescentes com necessidades especiais.
- Ah. Bem, não quero tirar o emprego de ninguém.
- Não, não é isso. Diz ela.
- É que não temos muitos candidatos
porque a carga horária é pequena, mas estamos mesmo precisando de alguém para trabalhar aqui em meio período. São umas vinte horas por semana.
Talvez o pagamento nem cubra meu aluguel, mas, se eu trabalhar duro, de repente consigo ser promovida.
- Posso fazer isso até alguma pessoa com necessidades especiais aparecer. Estou precisando muito de grana.
Lina me olha dos pés à cabeça.
- Por que está tão desesperada? O salário é uma merda. Calço o sapato novamente.
- Eu, hum... Amarro o sapato, enrolando para não fazer a confissão inevitável.
- Acabei de sair da prisão. Digo com rapidez e confiança, como se isso não me incomodasse tanto quanto incomoda.
- Mas eu não... eu posso fazer esse trabalho. Não vou decepcionar você nem causar nenhum problema.
Lina solta uma gargalhada.
É uma gargalhada alta, mas, ao ver que eu não ri, ela cruza os braços por cima do peito e inclina a cabeça.
- Ah, merda. Está falando sério?
Faço que sim.
- Estou. Mas se for contra as normas daqui, eu entendo mesmo. Não tem problema. Ela faz um gesto com a mão, como se fizesse pouco caso da frase.
- Ih, a gente nem tem normas por aqui. Não somos uma rede, podemos contratar quem quisermos. Sendo bem sincera, sou obcecada por Orange is the New Black, então se você prometer me contar quais partes da série são mentira, eu te dou um formulário para preencher.
Eu poderia chorar. Em vez disso, dou um sorriso falso.
- Já ouvi tantas piadas sobre essa série. Pelo jeito, preciso vê-la. Lina joga a cabeça para trás.
- Ah, com certeza. Com certeza. Melhor série, melhor elenco. Vem comigo.
Acompanho-a até o balcão de atendimento ao cliente, na parte da frente do mercado.
Ela vasculha uma gaveta, encontra um formulário e o entrega para mim junto de uma caneta.
- Se preencher enquanto está aqui, posso incluí-la no treinamento para novos funcionários da segunda-feira.
Pego o formulário e quero lhe agradecer, abraçá-la, dizer que ela está mudando minha vida.
No entanto, apenas sorrio e levo o formulário em silêncio até um banco perto da entrada do mercado.
Preencho meu nome completo, mas em apelido coloco aspas para saberem que prefiro ser chamada de Ana.
Não posso usar um crachá com o nome “Karol” nesta cidade. Alguém vai me reconhecê-lo. E a fofoca vai começar.
Estou na metade da primeira página quando sou interrompida.
- Oi.
Aperto com força a caneta quando ouço sua voz. Levanto a cabeça devagar, e Ruggero está na minha frente com o carrinho cheio de uns doze engradados de Gatorade.
Viro o formulário, esperando que ele não tenha conseguido ler meu nome.
Engulo a seco e tento parecer estar com o humor mais estável do que todos os meus humores que ele testemunhou ontem.
Gesticulo na direção dos engradados de Gatorade.
- Noite especial no bar hoje?
Ele parece ser tomado por um discreto alívio, como se estivesse esperando que eu fosse mandá-lo à merda. Ele encosta num dos engradados.
- Sou treinador numa escolinha de beisebol.
Desvio o olhar, porque sua resposta me constrange por algum motivo.
Ele não parece ser treinador em uma escolinha de beisebol.
Que mães de sorte.
Ah, não... Ele é treinador em uma escolinha. Será que tem filhos? Filhos
e esposa?
Será que eu quase transei com um treinador casado?
Encaixo a caneta na parte de trás da prancheta.
- Você é... hum... você é casado, né?
O sorriso dele sugere que não.
Ele nem precisa dizer, mas balança a
cabeça e afirma:
- Sou solteiro. Ele aponta para a prancheta no meu colo.
- Vai tentar conseguir emprego aqui?
- Pois é.
Dou uma olhada no balcão de atendimento ao cliente, e Lina está me
encarando.
Preciso tanto desse emprego, mas desse jeito posso dar a impressão de que um barman gato pode me distrair durante o trabalho.
Desvio a vista e me pergunto se o fato de Ruggero ter parado aqui não está
atrapalhando minhas chances de conseguir o trabalho.
Viro a prancheta, mas a inclino para que ele não consiga ver meu nome.
Começo a preencher meu endereço, torcendo para que ele vá embora.
Ele não vai.
Empurra o carrinho para o lado, dando passagem para um cara, encosta o ombro direito na parede e diz:
- Eu estava torcendo para te encontrar de novo por aí.
Não vou fazer isso agora.
Não vou enganá-lo quando ele não faz ideia de quem eu sou.
Também não vou arriscar este emprego por estar socializando com clientes.
- Você pode ir embora? Sussurro, mas alto o bastante para que ele consiga ouvir. Ele franze a testa.
- Fiz algo errado?
- Não, é que preciso mesmo terminar isto aqui. Ele tensiona a mandíbula e se afasta da parede.
- É que você está agindo como se estivesse com raiva, e estou me sentindo meio mal por causa de ontem à noite...
- Eu estou bem. Olho de novo para o balcão de atendimento ao cliente, e Lina continua me encarando.
Volto o olhar para Ruggero e imploro.
- Preciso muito deste emprego. E neste momento minha possível chefe está olhando para cá sem parar, e não quero ofender, mas você tem um monte de tatuagens e cara de encrenqueiro, e ela precisa ter certeza de que não vou causar nenhum problema.
Não ligo para o que aconteceu ontem à
noite. Foi mútuo. Não foi nada de mais.
Ele faz que sim lentamente com a cabeça e segura a barra do carrinho.
- Não foi nada de mais. Repete ele, parecendo ofendido.
Me sinto mal por um instante, mas não vou mentir para ele.
Ele pôs a mão dentro da minha calça e, se não tivéssemos sido interrompidos,
provavelmente teríamos transado.
Na picape dele.
Como é que isso poderia ter sido maravilhoso?
Mas ele tem razão, não posso dizer que não foi nada de mais.
Nem consigo olhá-lo sem encarar sua boca.
Ele beija bem, e isso está mexendo com minha cabeça, porque neste momento tenho muitas coisas mais importantes acontecendo na minha vida do que sua boca.
Ele fica parado por mais alguns segundos e depois põe a mão dentro de uma sacola no carrinho. Tira de lá uma garrafa marrom.
- Comprei caramelo. Caso você volte.
Ele joga a garrafa de volta no carrinho.
- Enfim. Boa sorte.
Ele parece constrangido ao se virar e sair do mercado.

Tento continuar preenchendo o formulário, mas agora estou tremendo.
Parece que tem uma bomba amarrada ao meu corpo e que ela começa a fazer a contagem regressiva na presença de Ruggero, ficando cada vez mais perto de explodir em cima dele, revelando todos os meus segredos.
Termino de preencher o formulário, mas minha letra saiu desleixada por causa do tremor das minhas mãos.
Quando volto ao atendimento ao cliente
e o entrego a Lina, ela pergunta:
- Aquele era seu namorado?
Eu me faço de boba.
- Quem?
- Ruggero Pasquarelli.
Pasquarelli? O nome do bar é Pasquarelli’s. Ele é dono do bar?
Balanço a cabeça, respondendo à pergunta de Lina.
- Não, a gente mal se conhece.
- Que pena. Ele virou um rapaz disputado por aqui desde que ele e Valentina terminaram.
Ela fala como se eu devesse saber quem é Valentina. Imagino que, numa cidade deste tamanho, a maioria das pessoas se conhece.
Olho para a porta por onde Ruggero saiu.
- Não estou querendo um rapaz disputado. Só um emprego mesmo.
Lina ri e depois analisa meu formulário.
- Você cresceu aqui?
- Não, sou de Denver. Vim fazer faculdade aqui. É mentira, nunca cursei uma faculdade, mas tem uma universidade aqui na cidade e eu planejava estudar nela em algum momento. Mas isso nunca chegou a acontecer.
- Ah, é? Em que você se formou?
- Não terminei o curso. Foi por isso que voltei. Minto.
- Vou fazer a rematrícula no próximo semestre.
- O emprego é perfeito para isso. Podemos organizar seus horários em
função das suas aulas.
Esteja aqui na segunda-feira às 8h para o
treinamento. Tem carteira de motorista?
Faço que sim.
- Tenho, eu trago. Não menciono o fato de que consegui minha carteira de volta no mês passado, depois de meses tentando reverter a suspensão.
- Obrigada.
Tento agradecer com o mínimo de entusiasmo possível na voz, mas até
agora as coisas estão dando certo. Arranjei um apartamento e, agora, um
emprego.
Agora só preciso encontrar minha filha.
Eu me viro para ir embora, mas Lina diz:- Espera. Não quer saber quanto vai ganhar?
- Ah, é. Quero, sim.
- Salário mínimo. É ridículo, eu sei. Não sou dona do mercado, senão eu aumentaria. Ela se inclina para a frente e abaixa a voz.
- Sabia que você provavelmente conseguiria um emprego na Lowe’s? Eles pagam o dobro disso para quem está começando.
- Tentei me candidatar pela internet na semana passada. Eles não me aceitam por causa dos meus antecedentes criminais.
- Ah. Que pena. Bem, então nos vemos na segunda. Antes de ir embora, encosto o punho no balcão e faço uma pergunta que provavelmente não deveria fazer.
- Só mais uma coisa. Sabe o cara com quem eu estava conversando? O Ruggero? Ela ergue a sobrancelha, curiosa.
- O que tem ele?
- Ele tem filhos?
- Só uma sobrinha ou algo assim.
Às vezes ela vem com ele. É bonitinha, mas tenho quase certeza de que ele é solteiro e não tem filhos.
Uma sobrinha?
Ou talvez a filha do seu melhor amigo falecido?
Ele vem fazer compras aqui com a minha filha?
Consigo dar um sorriso forçado em meio ao turbilhão de emoções que de repente começam a espiralar dentro de mim. Agradeço a ela mais uma vez, mas depois saio apressada na esperança de que, por algum milagre, a picape de Ruggero ainda esteja lá fora e que minha filha esteja dentro do carro com ele.
Dou uma olhada no estacionamento, mas ele já foi embora.
Sinto um aperto no peito, mas ainda consigo sentir a adrenalina disfarçada de
esperança me percorrendo: agora sei que ele é treinador numa escolinha de
beisebol e que April muito provavelmente joga no time dele, porque qual outro motivo ele teria para ser treinador, se não tem filhos?
Penso em ir direto para o campo de beisebol, mas isso é algo que precisa ser feito da maneira certa.
Antes preciso falar com Diego e Claudia.

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