Karol

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Querido Agus,

Quando as pessoas dizem que o mundo é pequeno, elas não estão brincando.
É minúsculo. Microscópico. Superlotado.
Só estou te dizendo isso porque sei que você não vai poder realmente ler estas cartas, mas vi a picape de Ruggero hoje à noite e achei que fosse chorar.
Na verdade, eu já estava chorando, porque ele tinha dito o nome dele e percebi quem ele era e eu estava o beijando e me senti tão culpada que saí correndo envergonhada e quase tive um ataque de
pânico.
Mas enfim. Aquela maldita picape. Não acredito que ele ainda a tem. Ainda me lembro da noite em que você chegou nela para me buscar na primeira vez em que a gente saiu. Dei uma risada porque era um laranja tão berrante e eu não conseguia imaginar que tipo de pessoa escolheria aquela cor de propósito.
Já te escrevi mais de trezentas cartas, e só hoje, ao dar uma olhada nelas, percebi que nenhuma conta os detalhes do momento em que nos conhecemos.
Escrevi sobre o nosso primeiro encontro, mas nunca mencionei a primeira vez que nos vimos.
Eu estava trabalhando como caixa do Dollar Days. Foi o primeiro emprego para o qual me candidatei depois que saí de Denver. Eu não conhecia ninguém, mas isso não me incomodava.
Era um estado novo e uma cidade nova, e ninguém tinha nenhuma ideia preconcebida em relação a mim.
Ninguém conhecia minha mãe.
Quando você entrou na minha fila, não te notei de imediato. Eu raramente olhava os clientes, especialmente se fossem rapazes da mesma faixa etária que eu. Até aquele momento, os rapazes da minha idade só tinham me decepcionado.
Achei que talvez eu devesse me sentir atraída por homens mais velhos, ou talvez até por mulheres, pois nenhum rapaz da minha idade tinha feito com que eu me sentisse bem em relação a mim mesma. Entre as cantadas na rua e as expectativas relacionadas a sexo, eu tinha perdido completamente a fé na população masculina da minha geração.
Era uma loja pequena e tudo lá dentro custava apenas um dólar, então as pessoas costumavam encher os carrinhos de coisas.
Você entrou na fila com apenas um prato raso. Me perguntei que tipo de pessoa compra somente um prato.
A maioria das pessoas espera receber amigos em casa de vez em quando, ou pelo menos espera que isso aconteça. Mas comprar um único prato dava a impressão de que você achava que ia sempre comer sozinho.
Passei o prato e o embrulhei antes de colocá-lo numa sacola e entregá-la a você.
Foi somente quando você entrou na minha fila pela segunda vez, alguns minutos depois, que finalmente olhei para o seu rosto.
Você ia comprar outro prato raso. Fiquei me sentindo melhor por você.
Passei o prato, você me deu o seu dólar e uns trocados, eu entreguei a sacola, e foi então que você sorriu.
Você me conquistou naquele momento, mas nem deve ter percebido.
Foi como se o seu sorriso tivesse me coberto de afeto.
Era perigoso e confortável, e eu não sabia o que fazer com aqueles sentimentos, então desviei o olhar.
Dois minutos depois, você estava na fila outra vez com um terceiro prato.
Passei o prato. Você pagou.
Fiz o embrulho e lhe entreguei a sacola, mas desta vez eu disse alguma coisa.
- Volte sempre. Falei.
Você sorriu e disse: - Se você insiste...
Você deu a volta no caixa e foi de novo para o corredor onde ficavam os pratos. A minha fila estava vazia, então fiquei observando até você reaparecer com o quarto prato e trazê-lo até o caixa.
Passei o prato e disse:
- Sabia que pode comprar mais de um produto de cada vez?
- Sabia. Respondeu você.
- Mas só preciso de um único prato.
- Então por que está comprando quatro?
- Porque estou criando coragem para te chamar para sair comigo.
Eu estava torcendo para que fosse isso. Entreguei a sacola, querendo que seus dedos tocassem os meus. E tocaram. A sensação foi exatamente como imaginei, como se nossas mãos fossem magnéticas. Tive que me esforçar muito para afastar minha mão da sua.
Tentei parecer indiferente ao seu flerte, pois era o que eu sempre fazia com os homens, então respondi:
- Os funcionários da loja não podem sair com clientes.
Não havia nenhuma firmeza nem verdade na minha voz, mas acho que você gostou do jogo que estávamos fazendo e respondeu:
- Tudo bem. Preciso só de um minutinho para corrigir a situação.
Você foi até o outro caixa da loja, a apenas alguns metros de distância, e te ouvi dizer: - Preciso devolver estes pratos, por favor.
A outra funcionária estava ao telefone com um cliente durante suas quatro idas ao caixa, então não sei se ela sabia que você estava brincando. Ela me olhou do caixa e fechou a cara. Dei de ombros,
como se eu não tivesse uma explicação para o rapaz com quatro notas fiscais diferentes para quatro pratos, e então me virei de costas para atender outro cliente.
Alguns minutos depois, você voltou para a minha fila e pôs um comprovante de devolução no balcão.
- Não sou mais cliente. E agora?
Peguei o comprovante, fingindo lê-lo com cuidado. Devolvi-o para você e lhe disse:
- Saio do trabalho às 19h. Eu devia ter dito 18h, pois terminei largando mais cedo. Passei a hora extra na loja ao lado comprando uma roupa nova.
Quando deu 19h20 e você ainda não tinha chegado, eu desisti, e já estava indo para o meu carro no momento em que seu carro entrou em disparada no estacionamento e parou do meu lado. Você abaixou o vidro e
disse: - Desculpe o atraso.
Sempre me atraso, então quem sou eu para julgar o atraso de alguém, mas te julguei com base na sua picape.
Achei que talvez você fosse louco ou metido. Era uma Ford F-250 antiga, com cabine dupla espaçosa, e o laranja mais horroroso que eu tinha visto na vida.
- Curti a picape.
Não sabia se eu estava dizendo a verdade ou mentindo. Era uma picape tão feia que a odiei. Mas, como era tão feia, adorei o fato de você ter ido me buscar nela.
- Não é minha. É do meu melhor amigo. Meu carro está na oficina.
Fiquei aliviada quando soube que não era sua, mas também um pouco decepcionada porque achei a cor bem divertida. Você gesticulou para que eu entrasse. Parecia estar orgulhoso e cheirava àquelas bengalinhas doces de Natal.
- É por isso que está atrasado? Seu carro quebrou? Você balançou a cabeça e disse:
- Não. Tive que terminar com minha namorada. Virei bruscamente a cabeça na sua direção:
- Você tem namorada?
- Não mais.
Você me olhou com uma expressão encabulada.
- Mas tinha quando me convidou para sair?
- Tinha, mas assim que comprei o terceiro prato percebi que ia terminar com ela. Já estava mais do que na hora você disse, e prosseguiu.
- Faz um tempo que a gente queria isso, só estávamos em uma posição confortável demais para terminar.
Você ligou a seta, entrou num posto e se aproximou de uma bomba de combustível.
- Minha mãe adora ela, vai ficar triste.
- As mães não costumam gostar muito de mim. Admiti, ou talvez fosse um alerta.
Você sorriu.
- Dá para entender. As mães preferem imaginar os filhos com meninas com cara de boazinha. Uma mãe não se sentiria à vontade com alguém tão sensual como você.
Eu não ia me ofender com um cara me chamando de sensual.
Naquele dia, me esforcei para ficar sensual. Gastei uma grana com o sutiã e com a camiseta decotada que eu tinha comprado trinta minutos antes, com o objetivo de deixar meus seios parecendo silicone.
Gostei do elogio, mesmo que você estivesse sendo um pouco indelicado.
Enquanto você enchia o tanque da picape do seu amigo, fiquei pensando na garota com cara de boazinha cujo coração você tinha acabado de partir só porque aceitei sair com você, e naquele
momento me senti meio que como uma víbora.
Mas, apesar de me sentir uma víbora, não quis cair fora. Estava gostando tanto da sua energia que senti vontade de me enroscar em você e nunca mais soltar.
Quando Ruggero disse o nome dele bem nos meus lábios mais cedo, quase respondi: “O Ruggero do Agus?”.
Mas a pergunta teria sido inútil, pois eu soube que ele era o seu Ruggero na mesma hora.
Quantos Ruggeros existem por aí? Nunca conheci nenhum outro.
Me senti sobrecarregada com tantos questionamentos, mas Ruggero me beijou e aquilo me partiu no meio, pois eu também queria beijá-lo, mas, mais do que isso, queria fazer perguntas sobre você. Queria dizer: “Como Agus era quando criança? O que você gostava nele? Ele falou de mim alguma vez? Ainda tem contato com os pais dele?
Você conheceu minha filha? Pode me ajudar a encaixar todas as peças da minha vida destruída?”.
Mas não consegui dizer nada, porque seu melhor amigo estava com a língua escaldante dele na minha boca e parecia estar marcando a ferro quente a palavra TRAIDORA em mim.
Não sei por que senti como se estivesse te traindo. Faz cinco anos que você está morto, e beijei o agente penitenciário, então você nem foi o último cara que beijei. Mas o beijo no agente não me deu a sensação de que eu estava te traindo. Talvez porque ele não fosse o seu melhor amigo. Ou talvez eu tenha me sentido como uma traidora por realmente ter sentido o beijo de Ruggero.
Ele se espalhou por todo o meu corpo, da mesma forma como seus beijos faziam, mas eu também estava me sentindo uma traidora, ou uma mentirosa, ou uma imprestável, porque Ruggero não fazia ideia de quem eu era.
Para Ruggero, ele estava sendo beijado por uma garota passageira que ele passara a noite encarando.
Para mim, eu estava sendo beijada pelo barman gato cujo melhor amigo tinha morrido por minha causa.
Tudo explodiu.
Parecia que eu estava sendo estilhaçada. Estava deixando Ruggero me tocar sabendo muito bem que, caso soubesse
quem eu era, ele provavelmente iria preferir me esfaquear.
Quando me afastei de seu beijo, a sensação era que eu estava tentando
apagar um incêndio florestal com uma bomba atômica.
Eu queria me desculpar, queria fugir.
Achei que eu fosse desmoronar quando pensei que Ruggero provavelmente te conhecia melhor do que eu.
Odiei perceber que o único cara com quem eu esbarrara nesta cidade era o único cara que eu deveria evitar.
Ruggero, no entanto, não se afastou quando chorei. Ele fez o que você teria feito: pôs os braços ao meu redor e me deixou ficar como eu precisava ficar, e foi tão bom, porque ninguém me abraçava daquele jeito desde você.
Fechei os olhos e fingi que seu melhor amigo era meu aliado.
Que ele estava do meu lado. Fingi que ele estava me abraçando apesar do que eu fizera com você e também que ele queria me ajudar a ficar bem.
Também deixei aquilo acontecer porque, se Ruggero está de volta aqui na cidade e se ele ainda dirige a mesma picape em que te conheci tantos anos atrás, isso significa que ele gosta de rotina.
E é bem provável que nossa filha faça parte da rotina dele.
Será que estou a uma pessoa de distância de April?
Se pudesse ver as páginas em que estou escrevendo esta carta, você veria as manchas de lágrimas. Parece que chorar é a única coisa que ainda sei fazer bem na vida. Chorar e tomar decisões ruins.
E, óbvio, também sou boa em escrever poemas ruins pra você.
Vou encerrar com um que compus no ônibus, quando estava voltando para esta cidade.
“Tenho uma filha que nunca abracei
Ela tem um nome que nunca gritei
Ela tem uma mãe que nunca a beijou
Ela tem uma mãe que já fracassou.”

Com amor,
Karol.

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