Karol

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Está chovendo na nossa volta para casa. A chuva que bate no para-brisa é o único som neste momento, pois nós dois estamos em silêncio.
Não dissemos nada um ao outro desde que nos encontramos mais cedo, no beco.
Será que ele está com raiva por eu ter dado o meu aviso prévio?
Não sei por que estaria, foi ele quem mencionou isso. Mas seu silêncio está
tornando a situação constrangedora.
No entanto, não consigo continuar trabalhando para ele. Como posso planejar minha possível partida se estamos começando a ansiar pela presença um do outro?
Sei que as coisas estavam confusas antes, mas elas vão acabar ficando ainda mais se eu deixar que isso continue.
Quando ele chega ao estacionamento, tem uma energia mal resolvida oscilando entre nós. Às vezes, ao me deixar em casa, ele nem desliga o motor da picape. Hoje, contudo, ele o desliga, tira a chave e o cinto, pega um guarda-chuva e sai do carro.
Ele demora apenas alguns segundos para chegar ao lado do passageiro, mas, nesse meio-tempo, decido que prefiro que ele não me acompanhe até lá em cima.
Posso subir sozinha. É melhor assim.
Não confio em mim mesma perto dele.
Ele abre minha porta, e eu estendo o braço para pegar o guarda-chuva, mas ele o afasta.
- O que está fazendo?
- Me dê o guarda-chuva. Posso subir sozinha. Ele recua um passo para que eu possa sair da picape.
- Não. Vou subir também.
- Não sei se você deveria fazer isso.
- Eu não deveria fazer isso de jeito nenhum. Diz ele.
Mas continua andando.
Continua segurando o guarda-chuva sobre a minha cabeça.
Começo a ficar ofegante antes mesmo de chegarmos ao topo da escada.
Tiro minhas chaves da bolsa, sem saber se ele está esperando entrar ou se vai apenas me dar boa-noite.
As duas alternativas me deixam nervosa.
Ambas são demais. Dá no mesmo.
Ele fecha o guarda-chuva quando chegamos à minha porta e fica esperando que eu a destranque. Antes de abri-la, eu me viro para ele como se ele fosse deixar que eu me despedisse sem convidá-lo para entrar.
Ele aponta para a porta, mas não diz nada.
Inspiro em silêncio e abro a porta do meu apartamento. Ele entra comigo e a fecha após entrar.
Ele está agindo com muita determinação. É o completo oposto do que estou sentindo. Pego Ivy no colo e a levo até o banheiro para que ela não possa sair caso Ruggero abra a porta para ir embora.
Quando fecho a porta do banheiro e me viro, Ruggero está parado perto do balcão, passando o dedo na pilha de cartas que imprimi.
Não quero que ele leia, então me aproximo, viro as cartas e as empurro
para o lado.
- São essas as cartas? Pergunta ele.
- A maioria. Mas também tenho cópias digitais. Digitei todas alguns meses atrás e salvei no Google Drive. Estava com medo de perdê-las.
- Pode ler alguma para mim? Balanço a cabeça. Para mim, elas são pessoais.
É a segunda vez que ele me pede para ler uma das cartas, e a resposta continua sendo não.
- Você pedir para eu ler uma das cartas é como se eu te pedisse para ouvir a gravação de uma das suas sessões de terapia.
- Não faço terapia. Diz Ruggero.
- Talvez devesse fazer. Ele morde o lábio e assente contemplativamente.
- Talvez eu faça mesmo.
Passo por ele e abro a geladeira. Venho enchendo-a aos poucos, então desta vez tenho mais bolachas Lunchables.
- Quer tomar alguma coisa? Tem água, chá, leite. Pego uma caixa de suco quase vazia. Um gole de suco de maçã.
- Não estou com sede.
Eu também não, mas tomo o resto do suco direto da caixa só para prevenir, pois parece que estou prestes a sentir uma sede enorme só de ver ele parado desse jeito no meu apartamento. Sua presença já é o suficiente para deixar minha garganta seca.
É diferente quando estamos trabalhando. Tem outras pessoas por perto que impedem minha mente de seguir o rumo que está seguindo agora.
Entretanto, quando somos apenas nós dois no meu apartamento, só consigo pensar no quanto estamos perto um do outro e em quantas vezes meu coração vai bater antes de ele se aproximar e me beijar.
Ponho a caixa vazia de suco no balcão e seco a boca.
- É por isso que você sempre tem gosto de maçã?
Olho bem para ele depois disso.
É algo íntimo de se dizer, admitir em voz alta que você conhece o gosto de alguém. Me sinto como uma adolescente inexperiente e deslumbrada diante do seu olhar, então passo a encarar meus pés, pois não olhar para ele é menos fatigante.
- O que você quer, Ruggero?
Ele se encosta calmamente no balcão. Estamos a apenas meio metro um do outro quando ele responde:
- Quero te conhecer melhor.
Eu não estava esperando que ele dissesse isso, então é óbvio que lanço um olhar em sua direção e logo me arrependo, pois ele está perto demais de mim.
- O que você quer saber?
- Mais sobre você. Do que você gosta, do que não gosta, seus objetivos. O que você quer fazer da vida?
Não consigo evitar uma risada. Eu estava esperando que ele fosse perguntar sobre Agus ou sobre algo relacionado a April ou à minha situação atual.
Mas ele está apenas puxando assunto, e não faço ideia de como devo reagir.
- Sempre quis ser chaveira.
Agora é Ruggero quem está rindo.
- Chaveira? Faço que sim.
- Por que chaveira?
- Porque ninguém se zanga com um chaveiro. Eles aparecem para ajudar as pessoas no meio de uma crise. Acho que seria recompensador ter um trabalho que melhora um pouco os dias ruins dos outros. Ruggero assente, parecendo satisfeito.
- Acho que nunca conheci ninguém que quisesse ser chaveiro.
- Bem, agora você conheceu. Próxima pergunta.
- Por que escolheu o nome April?
Reformulo a pergunta antes de responder.
- Por que os Bernasconi não quiseram mudar o nome que escolhi? Ele movimenta a mandíbula para a frente e para trás.
- Eles acharam que talvez você e Agus tivessem conversado sobre o nome e que April tivesse sido uma escolha dele.
- Agus nem chegou a saber que eu estava grávida.
- E você, sabia que estava grávida? Pergunta ele. -Antes de Agus falecer?
Balanço a cabeça. Minha voz sai como um sussurro: -Não. Eu nunca teria me declarado culpada se soubesse que estava grávida de April.
Ele se concentra nessa resposta.
- E por que se declarou culpada?
Abraço meu corpo. Meus olhos estão começando a arder, então paro um
momento e inspiro durante a recordação antes de responder.
- Eu não estava com a cabeça muito boa. Admito. Mas não entro em detalhes.
Não consigo.
Ruggero não faz outra pergunta de imediato. Ele deixa o silêncio preencher o espaço e então o rompe, dizendo:
- Onde a gente estaria agora se eu não conhecesse Agustín?
- Como assim? Seus olhos se voltam rapidamente para a minha boca.
É só um relance, mas eu vejo. E sinto.
- Na noite em que nos conhecemos no bar... você disse que não sabia quem eu era. E se eu fosse apenas um cara qualquer que não conhecesse April, nem Agus, nem você? O que acha que teria acontecido entre a gente naquela noite?
- Muito mais do que aconteceu. Admito.
Ele engole a seco, como se tivesse engolido minha resposta.
Ficamos encarando um ao outro enquanto espero ansiosamente sua próxima pergunta ou pensamento ou movimento.
- Às vezes me pergunto se a gente sequer estaria conversando agora se eu não conhecesse April.
- Por que isso importa? Pergunto.
- Porque seria a diferença entre você querer ficar comigo só por minha causa ou para me usar pelos meus contatos.
Tensiono a mandíbula.
Preciso desviar a vista e olhar algo que não seja ele, porque seu comentário me irrita.
- Se eu quisesse usá-lo pelos seus contatos, eu já teria dado pra você a
esta altura do campeonato.
Me afasto do balcão.
- Acho melhor você ir embora.
Começo a me dirigir à porta, mas Ruggero segura meu pulso e me puxa
para trás.
Eu me viro, mas, antes que eu possa gritar com ele, vejo a expressão em seu olhar: remorso. Tristeza.
Ele me puxa para o seu peito e põe os braços ao meu redor num abraço consolador. Fico rígida contra ele, sem saber o que fazer com a raiva que me resta. Ele desliza as mãos até meus braços e os ergue, enroscando-os em sua cintura.

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