Ruggero

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Faz três dias que ela esteve no bar e três dias que estive no mercado pela última vez. Disse a mim mesmo que não voltaria mais aqui. Decidi que voltaria a fazer compras no Walmart, mas, depois de jantar com April ontem à noite, passei a noite inteira pensando em Karol.
Percebi que, desde que ela voltou para a cidade, quanto mais tempo passo com April, mais curioso fico a respeito de Karol.
Comparo os trejeitos de April com os dela agora que existe essa possibilidade. Até mesmo a personalidade de April parece fazer muito mais sentido agora. Agus era direto. Racional. Não era muito imaginativo, mas eu via isso como uma qualidade. Ele queria saber como e por qual motivo as coisas funcionavam, não perdia tempo com nada que não fosse baseado em ciência.
April é o completo oposto, e até agora eu nunca tinha me perguntado se ela puxara isso da mãe.
Será que Karol é racional como Agus, ou será que gosta de usar a imaginação?
Ela é artística? Tem sonhos além de
reencontrar a filha?
Mais importante ainda, ela é uma boa pessoa?
Agustin era. Sempre presumi que Karol não fosse uma pessoa boa por causa daquela única noite.
Daquela única causa e consequência. Daquela única decisão terrível que ela tomou.
Mas e se estivéssemos apenas procurando alguém para levar a culpa
devido ao nosso imenso sofrimento?
Nunca me ocorreu que talvez Karol estivesse sofrendo tanto quanto nós.
Tenho tantas perguntas a lhe fazer.
Eu nem devia querer essas respostas,
mas preciso saber mais sobre aquela noite e sobre as intenções dela.
Tenho a sensação de que ela não vai deixar a cidade sem antes lutar, e por mais que Diego e Claudia queiram varrer isso para debaixo do tapete, esse não é o
tipo de situação que vai simplesmente desaparecer.
Talvez seja por isso que eu esteja aqui, sentado na picape, observando-a guardar as compras nos carros. Não sei se ela percebeu que faz meia hora que estou aqui no estacionamento, à espreita.
Deve ter percebido.
Minha picape não se camufla muito bem nos ambientes.
Escuto uma batida no vidro que me deixa sobressaltado.
Meus olhos encontram os de Cláudia.
Ela está com April no quadril, então abro a porta.
- O que estão fazendo aqui?
Claudia me olha com uma expressão confusa. Certamente estava esperando que eu reagisse com mais entusiasmo do que preocupação.
- Viemos fazer compras e vimos sua picape.
- Quero ir com você. Fala April.
Ela tenta me alcançar, e deslizo o corpo para fora da picape enquanto a pego do colo de Cláudia. Na mesma hora dou uma olhada no estacionamento para ver se Karol não está aqui fora.
- Vocês precisam ir embora. Digo para Cláudia.
Ela estacionou na fileira em frente à minha, então vou até seu carro.
- O que houve? Pergunta.
Me viro para ela e faço questão de escolher com cuidado minhas palavras.
- Ela trabalha aqui.
Vejo a confusão no rosto de Cláudia antes de a ficha cair. Assim que ela entende a que estou me referindo, suas bochechas começam a empalidecer.
- O quê?
- Ela está trabalhando agora. Precisa tirar April daqui.
- Mas eu quero ir com você. Fala April.
- Mais tarde eu te busco. Digo, segurando a maçaneta. O carro de Claudia está trancado.
Fico esperando ela destrancá-lo, mas ela congelou, como se estivesse em transe.
- Cláudia.Ela rapidamente volta a se concentrar e começa a vasculhar a bolsa atrás da chave.
É então que eu vejo Karol
É então que Karol me vê.
- Depressa. Digo com a voz baixa.
As mãos de Cláudia tremem enquanto ela começa a apertar o botão da chave.
Karol parou de andar.
Está imóvel no meio do estacionamento, nos encarando.
Ao entender o que está vendo, e que sua filha está a apenas alguns metros de distância, ela abandona o carrinho do cliente e começa a vir em nossa direção.
Claudia consegue destravar as portas, então escancaro a porta de trás e ponho April no assento de elevação.
Não sei por que tenho a sensação de
que estou correndo contra o tempo.
Não é como se Karol fosse capaz de
pegá-la com nós dois aqui. Só não quero que Cláudia precise lidar com ela.
Não na frente de April.
E também esse não é o lugar nem o momento para Karol conhecer a filha. Seria caótico demais. April ficaria assustada.
- Esperem! Grita Karol.
April nem está com o cinto afivelado quando digo: - Vá.
E então fecho a porta. Claudia dá marcha a ré e sai da vaga assim que Karol nos alcança. Ela passa por mim e se lança atrás do carro, e por mais que eu queira agarrá-la e puxá-la para trás, não ponho as mãos nela por ainda me arrepender de quando a tirei da porta da casa deles.
Karol aproxima-se do carro o suficiente para encostar na traseira dele e implorar:
- Espere! Claudia, espere! Por favor!
Claudia não espera.
Ela vai embora, e é doloroso ver Karol considerando correr atrás do carro.
Após finalmente perceber que não vai conseguir detê- las, ela se vira e me olha. Há lágrimas escorrendo pelo seu rosto.
Ela cobre a boca com as mãos e começa a soluçar.
Estou dividido; me sinto aliviado por Karol não ter nos alcançado a tempo, mas também arrasado pelo mesmo motivo.
Quero que Karol conheça a filha, mas não quero que April conheça a mãe, embora elas sejam a mesma pessoa.
Parece que sou ao mesmo tempo o monstro de Karol e o protetor de April.
Karol me olha como se estivesse prestes a desmaiar de tanto sofrimento.
Não tem condições de terminar o turno. Aponto para minha picape.
- Eu te levo para casa. Como sua chefe se chama? Vou lá avisar que você não está se sentindo bem.
Ela enxuga os olhos com as mãos.
- Lina. Ela diz, andando frustrada na direção da minha picape.
Acho que sei quem é essa Lina. Já a vi no mercado antes.
O carrinho que Karol abandonou ainda está no mesmo lugar. A senhora cujas compras Karol estava levando parou ao lado do carro dela e está observando Karol entrar na minha picape. Deve estar se perguntando o que diabos foi todo esse tumulto.
Vou correndo até o carrinho e o empurro até a senhora.
- Desculpe pelo que aconteceu. A mulher assente e destranca o porta-malas.
- Espero que ela esteja bem.
- Está, sim.
Guardo as compras em seu carro e levo o carrinho de volta ao mercado.
Vou até o balcão de atendimento ao consumidor e encontro Lina.
Tento sorrir para ela, mas estou agitado demais para conseguir fazer isso.
- Karol  não está se sentindo muito bem. Minto.
- Vou levá-la para a casa dela. Só queria te avisar.
- Ah, puxa. Como ela está?
- Não tão bem, mas vai melhorar. Sabe se ela tem alguma coisa aqui que eu precise pegar? Uma bolsa, algo assim?
Lina assente.
- Tem, sim. Ela usa o compartimento número 12 do guarda-volumes na sala de descanso.
Ela aponta para uma porta atrás do balcão de atendimento ao consumidor.
Dou a volta no balcão e passo pela porta da sala de descanso. A garota do prédio de Karol está sentada à mesa. Ela me olha, e tenho certeza de que a vejo fazendo uma cara feia.
- O que está fazendo na nossa sala de descanso, babaca?
Nem tento me defender. Ela já tem uma opinião formada sobre mim, e, a esta altura, concordo com ela.
Abro o compartimento 12 e vou pegar a bolsa de Karol. É mais uma ecobag, e a parte de cima está toda aberta, então vejo uma pilha grossa de papéis dentro.
Parece um manuscrito.
Digo a mim mesmo que não devo ver o que é, mas meus olhos param
involuntariamente na primeira frase da primeira página.
Querido Agus.
Quero ler mais, mas fecho a ecobag e respeito sua privacidade.
Antes de sair da sala de descanso, digo para a garota:
- Karol está se sentindo mal. Vou levá-la para casa, mas acha que pode dar uma conferida nela à noite?
Os olhos dela estão bem concentrados em mim. Ela finalmente concorda com a cabeça.
- Tá bom, babaca.
Fico com vontade de rir, mas neste momento tem muitas coisas suprimindo minha risada.
Quando passo de novo por Lina, ela diz:
- Avise a Karol que bati ponto por ela e que é para ela me ligar se precisar de alguma coisa.
Ela não tem telefone, mas assinto.
- Pode deixar. Obrigado, Lina.
Quando chego à picape, Karol está encolhida no banco de passageiro,
voltada para a janela.
Ela estremece quando abro a porta. Coloco a ecobag entre nós dois, e ela a puxa para o seu outro lado.
Ainda está chorando, mas não me diz nada, então fico em silêncio.
Eu nem saberia o que dizer.
Desculpa?
Você está bem?
Sou um idiota?

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