quatro - atentamente

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Corresponde ao capítulo 4 de estranhamente.

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De acordo com Sócrates, três coisas devem ser feitas por um juiz: ouvir atentamente, considerar sobriamente e decidir imparcialmente. Meu juiz era eu e o mundo, e eu tinha mais o que fazer do que me atentar a qualquer julgamento, seja ele atento, sóbrio ou imparcial. Não acredito nesse último, só para constar.

É difícil não ser cética na imparcialidade em meu caso. Apenas isso.

Mantive meus hábitos, é óbvio. Não conseguia me desvencilhar deles e nem via motivos para isso. Não até aquela manhã.

Tudo começou bem. Levantei, terminei meus rituais matinais de higiene, fui para a cozinha, peguei minhas vasilhas e meus morangos como deveria, então comecei a comê-los um a um. Cinco voltas sentindo sua textura. A primeira mordida sentindo o suco azedo e ao mesmo tempo doce descendo por minha garganta. Esse era mais um motivo que me fazia gostar tanto dessa fruta. Ela era simplesmente única. Não era apenas doce, nem somente azeda. Seus poros faziam cócegas agradáveis em minha língua enquanto ameaçava sentir todo seu sabor.

E ultimamente eu tinha mais um motivo para gostar tanto assim, que era o profundo cheiro de Camila. O último toque de seu perfume. E sim, me pergunto se é impróprio demais comer algo que lembra uma pessoa, mas Sócrates diz que não vivemos para comer, mas comemos para viver, o que é confuso, mas deve significar alguma coisa.

Não importa. Ainda que fosse inadequado, eu não podia abandonar isso. Meus pais me ensinaram o que é o sagrado, a importância irrevogável de sua existência, e ali estava o sagrado para mim. Talvez não como deveria ser para eles, mas papai e mamãe não estavam ali e não podiam saber o que pensava se eu nada dissesse.

- Bom dia, Lauren - a voz de Camila me assustou.

Quando ela surgiu e por quê? Mais uma vez, eu digo. Não deveria estar ali, mas parecia me observar atentamente e tentar me adivinhar. Isso me deixou nervosa, mas ela sempre me deixava nervosa.

E, certo... Eu precisava reagir e ser educada. Foi isso que me ensinaram.

- Obrigada. Bom dia, Cam-i-la - droga! Gaguejei! E me senti ainda mais nervosa por ter revelado que não conseguia pronunciar o nome dela direito quando ele era tão bonito.

Mas Camila ignorou, o que foi realmente gentil.

- Dormiu bem? - perguntou, contornando o balcão como se eu não estivesse ali e mexendo nos armários.

Eu dormi bem?

- Sim? - pareceu ser o mais educado a dizer.

- Eu dormi muito bem - continuou, falando rápido como no outro dia que conseguiu arrancar facilmente informações que não deveriam ser ditas - dormi feliz, porque sua pintura me deixou alegre.

O quê?

Oh! Eu a deixei feliz!

Um quentinho se apossou de meu corpo como um banho quente que vinha de dentro, não do chuveiro que não me protegia do frio fora de suas gotas intensas. No entanto, não soube o que dizer sobre isso. Nunca tinha tido uma conversa assim, então não tinha um roteiro para isso. Então, e agora? O que eu faço ou digo? Havia uma profundidade ali que nunca vira alguém alcançar, ainda que dessa vez eu tenha dado uma abertura gigante para que existisse e persistisse. Camila queria se aproximar de mim, mas eu não sabia o que fazer e até onde ela podia ir sem saber do que não podia saber.

- Você vai cursar Artes, não é?

Oh, sim! Isso era feliz e seguro. Era perfeito, na verdade! A maneira mais fácil e mais segura de vivermos honradamente consiste em sermos, na realidade, o que parecemos ser, certo, Sócrates?

LIVRO 2 - intensamenteOnde histórias criam vida. Descubra agora