vinte e oito - corajosamente

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Capítulo TRINTA E TRÊS de estranhamente.

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Já que é preciso aceitar a vida, que seja então corajosamente, Lygia Fagundes Telles. Simplesmente, depois de tudo o que passei, só me restava a coragem e a vida. E Camila. Sempre me restaria seu amor, não é?

Ao menos era o que eu achava até ela começar a agir estranho.

Deixe-me explicar. Ela ficou comigo o tempo todo, o que era bom. Mesmo quando fui chamada para contar o que aconteceu entre Peter e eu naquele aeroporto, ela ficou lá comigo e me ouviu sair da bolha de segurança que ela me fornecia e responder, toda a dor e loucura que fora aquilo me abatendo como se eu tivesse sido engordada para ser servida na ceia de Natal. Claro que ninguém quer passar por isso, mas era necessário e gastei todo o meu tempo de hospital enquanto Camila não estava ou quando ela dormia para pensar no que deveria dizer, então quando eu cheguei lá, ainda que pensar nisso tudo fosse perturbador, eu sabia o que falar.

— Muito bem - começou o delegado, que Allyson disse ser um substituto depois que foi entregue a participação do antigo, o que eu sabia ser uma das pessoas que se encontrara em meu quarto e que inclusive se demorou muito naquela última visita. Ele era dos piores e não fazia questão de esconder quem era porque sabia que não tínhamos como contar por um motivo ou outro. Eu queria ter matado ele com minhas próprias mãos quando entendi que ele estava complicando toda a coisa que poderia ter salvado tantas crianças há mais tempo, mas tudo o que pude fazer fora sentar diante do delegado atual e ser guiada de volta ao inferno necessário – pode nos contar o que aconteceu?

Podia, mas não queria. Querer não é poder, entretanto. Não sei quem disse isso, mas está correto, e perceber que eu precisava fazer isso, voltar lá e contar tudo ainda que com a presença de quem disseram ser meu advogado foi como me jogar em uma fogueira atiçada por palha e álcool. Meus olhos arderam enquanto eu sentia saudades de casa, onde nada daquilo podia me atingir, mas eu contei, deixando as lembranças virem.

— Peter sempre me levava lá na clínica – as  imagens voltaram para minha mente. O sorriso que ele dera, o jeito como falou que seria diferente, quando ele parou o carro, sua mão me forçando a seguir caminho, seu rosto tão assustador e como parecia estranhamente feliz, o que nunca poderia dizer ser algo bom para mim – nesse dia foi diferente, ele trocou de carro no caminho e encontrei por sorte as mamonas, que reconheci por ter visto em um livro por coincidência que as sementes matavam.

Foi coincidência? Talvez não, já que eu estava procurando como matá-lo, mas pode ser que sim, porque eu não sabia que a encontraria entre as várias opções relatadas. Matar uma pessoa parecia incrivelmente fácil nos livros, mas na realidade mesmo com todo o desejo a prática é complicada. Mas o meu papel entre toda essa coisa dolorosa estava ali.

— Eu peguei porque não aguentava mais – continuei entregando a dor que eu sentia porque era inevitavelmente comovente e não podia ficar prendendo ainda que o tal advogado tivesse dito que eu poderia ficar calada. Eu era mais inteligente e dona do que realmente aconteceu, não ele – eram para mim, mas não me deram tempo lá dentro porque tinha muita gente... dormi e acordei algumas vezes e eles não paravam de chegar e entrar. Quando acabou, perceberam que estava grávida quando me senti mal e... e me levaram para tirar.

Sempre me levavam no mesmo lugar. Eu queria saber onde era para poder contar, ainda que ali não fosse ilegal, mas quantas mais eles levaram? E se tivesse outros lugares como aquele? Eu era uma criança quando comecei a ir e me senti uma criança presa em suas mãos quando fui pela última vez. Doía tanto...

— Ele me disse que dessa vez seria diferente, e que me comportasse porque minhas amigas estariam em perigo – minha voz se atropelou com o mesmo pavor que senti quando o ouvi ameaçá-las e tremi por dentro como se uma trovoada acontecesse em meu interior – quando chegamos no aeroporto fiquei com medo e peguei as sementes que tinha tirado das frutas ainda na clínica. Ia comer, mas ele as tomou dizendo "quem te deu balas?" e comeu no meu lugar antes que eu conseguisse falar algo. E...

LIVRO 2 - intensamenteOnde histórias criam vida. Descubra agora