quinze - desesperadamente

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Atenção para conteúdo sensível!

Capítulo 15 de estranhamente.

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Gosto de viver. Algumas vezes me sinto muito, desesperadamente, loucamente miserável, atormentada pela aflição, mas mesmo diante disso tudo eu compreendo que estar viva é uma coisa grandiosa. Pelo menos era isso que eu queria acreditar quando penso no que Agatha Christie, a escritora, relatou. Era mais fácil agora que antes, mas ocorre que o tempo não para e com isso não fiquei congelada no momento em que me diziam entre risos que vinte e seis pizzas era coisa demais e eu discordava fervorosamente. Elas diziam isso enquanto comiam desesperadamente, então não tinham como aplicar uma moral em suas palavras.

Pulando essa felicidade, veio no dia seguinte Peter e meu pesadelo. Queria poder dizer que lutei e venci. Que o mordi e arranquei seus pedaços até que não restasse nada, mas isso seria mentira e, apesar de fazer com louvor, eu não gostava de mentir. Em vez disso, o segui pensando e pensando. Sempre tão quieta que se Peter estranhou fora com um olhar ou dois que sequer dera importância, mas as pessoas geralmente não davam importância a coisas aparentemente ínfimas, apenas as deixam escorregar entre os dedos e fazer um estrago silencioso e potente.

Impossível não perceber aqui, nessa altura, que um estrago já havia sido feito com a libertação que a verdade representa em corações aturdidos como o meu. Achei que fosse ser mais difícil seguir adiante com o que faziam comigo, mas eu apenas caminhei, deitei, deixei. Não fazia tanta diferença depois de tudo, empurrei para dentro de mim, porque já acontecia há tanto tempo que era simplesmente assim.

Entretanto, devo dizer que algo em mim gritava desesperadamente para deixar claro que não era justo, e ao contrário de antes, que durante a vida toda me citou Agatha Christie: ao final, nem mesmo me sentia infeliz, mas apenas apática. Nada parecia ter qualquer importância. E os anos foram passando. Sim, os anos foram passando. De repente eu não tinha três, nem quatro, nem cinco anos ou qualquer outra idade que viera a passar obrigatoriamente até chegar na adolescência adulta, os breves dezoito anos que me desceu pela garganta pegajosamente sem que eu tivesse escolha. Eu estava tão infeliz, que sequer estava infeliz, e meus pais se acostumaram com minha apatia por viver, com a forma ao qual nada parecia ter importância, nem gritar por socorro.

Assim eu era vista. Silenciosa e sozinha em tamanho alcance que nada poderia tocar. Abandonada, mas não com essas palavras, afinal, quem me abandonaria? E vista assim, eu sabia que havia sido minha apresentação a Camila que a levou a me achar mais assustadora que indefesa, mais má que assustadiça, mais brava que apática. Tem como culpar a rede sem fio do desconhecimento? Vamos incluir que eu nem queria que me conhecesse, mas depois estava ali, transpassando a apatia e entrando no desejo desesperado de fim.

Nunca gostei de viver e desde que me lembro nunca gostei de mim. Nem a criancinha Lauren, entregue aos três anos a um quarto sozinha e despida com ajuda porque sequer sabia fazer isso, a Lauren de quatro anos obrigada a deixar a escolinha porque me enlouquecia e a todos ao meu redor com dores irreais e explosões inexplicáveis e indevidas, a Lauren que descobria o que era fazer sexo e o que era gravidez e entendia o que estava acontecendo, até a Lauren adulta que dera razão aos sentimentos de ódio, mergulhava em amor e percebia que sim, Agatha Christie, eu gosto de viver. Gosto porque agora eu tinha motivos e descobrira o que é viver de verdade.

Devo citar Agatha Christie duas vezes agora, primeiro porque durante todo esse processo de me manter indo para aquela tortura gratuita, desmedida, violenta, me especializei em assassinatos de interesse silencioso e familiar. Quero dizer, eu me senti na liberdade de pensar na morte de cada um deles. Me permiti isso porque queria me livrar desesperadamente do que acontecia e da vida de quem era cruel o bastante para fazer isso. Depois, me vi tendo de concordar que a essência da vida é andar para a frente; sem possibilidade de fazer ou intentar marcha a trás, logo, esses pensamentos eram uma ida sem volta. Preciso acrescentar algo após isso?

LIVRO 2 - intensamenteOnde histórias criam vida. Descubra agora