dezessete - infernalmente

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Capítulo DEZOITO de estranhamente.

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Diz Clarice Lispector, e eu concordo, que a barata e eu somos infernalmente livres porque a nossa matéria viva é maior que nós, somos infernalmente livres porque minha própria vida é tão pouco cabível dentro de meu corpo que não consigo usá-la. Minha vida é mais usada pela terra do que por mim, sou tão maior do que aquilo que eu chamava de "eu" que, somente tendo a vida do mundo, eu me teria. Isso eu não preciso explicar, mas me veio em mente desde que Peter fora me buscar em casa para um recesso de fim de ano em família que eu não queria. Isso porque, de rosto baixo enquanto caminhávamos em direção ao carro onde me levaria para me trancafiar em casa, passara uma barata por nós fugindo para o esgoto tanto quanto eu. Sem escolha, era o que ambos éramos. Nossas vidas longe de nós porque nesse mundo não nos cabíamos. Era simplesmente complicado assim.

Não queria dizer do que foi meu Natal, mas a palavra é mesmo que o conceito de inferno que meus pais tanto repetiam se reformulou dentro de mim e vomitou maldades. Não sei se o inferno era eu, ou se o inferno era estar ali, mas no fim das contas eu estava apenas sendo uma matéria viva obediente e silenciosa, minhas mãos tentando me arrancar os ouvidos com fogos e os sorrisos brilhantes de meus pais quando a apatia venceu meu desconforto com as roupas espinhentas que me deram.

Nunca entendi o motivo de comemorarmos o Natal e o Ano Novo. Quero dizer... o quê? Uma vida inexistente que parecia nascer em todos em tamanha felicidade, palavras de salvação e amor que nunca me atingia. Por que eu deveria me sentir feliz por ter de me recolher a uma imagem que não passava disso para mim? Era isso, uma imagem mais adorada por meus pais que eu. Soo rancorosa assim, sei disso, mas não creio que poderia ser diferente, pois a intensidade da alegria de meus pais era tão sufocante que perceber que eu nunca a tive e nunca a teria me matava. Eles eram minha origem, eu passara o inferno por uma aprovação que nunca ganhara deles em tamanhas exigências.

E quanto ao Ano Novo? Ah, claro. Era apenas uma mudança de um número ou dois no calendário. Nada mudava. Os fogos estouravam meus ouvidos e queimavam meus olhos para ver meus pais felizes novamente enquanto no dia seguinte, o novíssimo dia dois do ano, eu voltava para minha tortura debaixo de seus sorrisos esperançosos. Todos os dias eram iguais. Raras folgas, dores, esperanças. E no que era feito de meus pais, eu entendia Clarice quando ela dizia que umas das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para frente. Foi o apesar de que me deu uma angústia que insatisfeita foi criadora de minha própria vida. Fora por isso que sempre fui boazinha. O apesar de era minha maldição e boia de sobrevivência.

Eu realmente não queria falar sobre o tal fim de ano, mas há transcrições que são necessárias, uh? Quando cheguei na casa de meus pais, me surpreendi incomodamente que não era a mesma casa em que cresci. Não sei por que mudaram e eles não deram explicação alguma senão frases agudas de "não é uma casa linda?!" ou "você vai amar seu quarto!". Nem um, nem outro. A casa era estranha, desconhecida, espaços assombrosamente novos. Meu quarto tinha o mesmo teor doloroso que o outro, mas com o piorar de novidade. Era assustador não reconhecer nada ali, ainda mais que minha chegada ao apartamento onde atualmente vivia porque tudo lá havia sido disposto para me encaixar enquanto naquela casa desconhecida e perturbadora tudo fora organizado de modo a agradar meus pais em suas fantasias de como eu deveria ser.

Era inebriante. Eu não consegui beber ou comer naquelas coisas estranhas, meu estômago gritando em todos os tipos de protesto e meus rins confusos e desmaiados. Eu não era nada além de reclamações, mas como sempre, tudo o que meus pais me forçavam a engolir goela abaixo fora da aceitação de meu corpo doeu e voltou. Vomitar era nojento, mas era tão inevitável quanto o desespero infernal ao qual era submetida naquele ambiente em que eu simplesmente não era eu, em que eu passara a desejar o que a célebre frase de Clarice Lispector rutilava em minha mente: Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome.

LIVRO 2 - intensamenteOnde histórias criam vida. Descubra agora