seis - desamparadamente

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Correspondente ao capítulo 6 de estranhamente

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Freud já dizia: nós nunca somos desamparadamente infelizes como quando perdemos um amor. Foi assim que aconteceu quando eu pensava que já era infeliz o bastante. É que, até ali, não sabia o que era um amor para de fato perdê-lo, e estava desde sempre abandonada para poder ficar bem.

Fazia parte, era o que diziam.

Camila não me olhava enquanto caminhava comigo, e a ouvi reclamar de que teria de me levar para onde teria aula. As meninas disseram que era caminho para ela, que praguejou até sua voz morrer.

Não falou comigo em momento algum. Eu entendia que me odiasse agora, depois de tudo, mas me sentia desamparada por não ter mais uma atenção de alguém que queria mesmo me conhecer ainda que isso não pudesse acontecer.

Não era culpa dela. Eu era assim. E meu corpo parecia chorar desamparadamente a cada vez que Camila respirava perto de mim e me ignorava como todas as pessoas que eu amava faziam.

Deixou de me ignorar somente quando precisou me mostrar um prédio disforme e disse: ali é o restaurante universitário, vai encontrar as meninas lá para almoçar.

Fazia parte, eu precisava me conformar. E realmente me confortaria saber que me levaria para um lugar seguro. Ao menos eu estava com meu moletom para me proteger quando estivesse sozinha.

Aquele lugar era assustadoramente grande e apertado de gente, e usei os pequenos tampões de ouvido que Allyson me deu para abafar tudo aquilo e sobreviver. Isso estaria bom. Era só um turno até eu seguir minha rotina desgastante e solitária.

- Esposa! - o som me assustou e mais ainda quando um corpo de mulher invadiu nosso espaço e se apertou contra Camila.

Espere! Camila era casada?

Eu não estava respirando agora. Eu nem sabia como respirar. Só o que sabia é que Camila ser casada me machucava de uma forma confusa, algo espinhoso dentro de mim, dentes internos comendo meu estômago aos socos e chutes, os caninhos mordiscando as veias de meu coração para sentir o sangue jorrar desesperado para fugir daquele monstro enquanto ele ria.

Foi uma nova mordida quando Camila riu e não fora para mim. Então ela disse:

- Oi, esposa!

E eu morri, completamente devorada por dentro.

- Aonde está indo? Desistiu da psiquiatria? - bem que eu queria - você está me traindo indo para Humanas, Camila Cabello?!

Estava me traindo sendo casada e me enfiando um Troll idiota goela abaixo. Me traindo rindo para alguém que não era eu. Alguém que nem sabe as áreas de conhecimento.

- Essa é Lauren Jauregui, minha nova colega de apartamento. Estou fazendo o favor de levar ela ao Instituto de Artes, porque é caloura - contou.

Um favor... um favor...

- Ah, uma baby! - a sequestradora de sorrisos exclamou.

Não gostei.

Não gostei mesmo.

- Hey, Lauren. Essa é Dakota, minha amiga e colega de curso.

Nome feio.

- Mais que amiga - disse a tal Dakota e de canto de olho a vi se pousar no ombro de Camila, próxima demais.

Não a julgava, mas não gostei.

Ela era bonita demais, mas eu também sabia ser bonita. Todos diziam que eu era bonita, então eu era bonita. Se eu era bonita, também poderia me pousar em Camila e...

Não, ela tinha esposa.

O Troll em minha garganta se balançou em minha goela.

- Hey, oi! - essa Dakota falou, animada demais, e patética demais. Como se eu fosse responder a uma estranha. Nem se eu quisesse minha voz sairia. Aquilo tinha de passar logo! - caramba, você é bonita pra caralho. Fica com garotas? Gostei do seu moletom.

Sim, eu sou muito bonita! E meu moletom tinha sido Camila a me dar, obviamente era perfeito.

Todas as palavras que eu queria e não queria dizer atropelaram minha educação ensaiada. Eu não queria falar com essa tal de Dakota. Eu não queria falar com ninguém, porque ninguém entendia nada e isso me doía.

- Lauren, você não ouviu? - Camila perguntou e tive de olhar para ela porque algo me pareceu bem errado.

Ela estava com raiva de mim? Ela nunca mais iria gostar de mim, mesmo que todo mundo na minha vida médica dizia gostar de mim. Mas o que culpar? Eu não havia sido boazinha com ela. Não aguentei calada.

- Ouvi - respondi porque era verdade e eu não tinha sei lá o que para não dizer a verdade. 

Olhando para a tal Dakota, notei que ela tinha cabelos escuros como o meu e olhos claros como os meus, e uma pancada em meu cérebro observou que ela era tudo o que eu não podia ser: uma pessoa bonita que fosse normal e não machucasse ninguém.

Frustrante!

Camila andou rápido e não consegui acompanhar e respirar ao mesmo tempo para pedir que fosse com calma. Acho que ela nem queria que eu chegasse perto, mas ao menos não me deixaria sozinha e...

Ela parou e virou para mim. Finalmente!

- Ali - apontou e olhei para o prédio que indicava - é a entrada do Instituto de Artes. Siga as placas e vai conseguir achar suas salas. As meninas devem te encontrar no Restaurante Universitário para o almoço, eu já te mostrei onde fica, lembra?

- Sim, obrigada - me lembrei.

Mas ela...

- Ok, tchau - se virou e começou a ir embora.

Como assim? Me senti desesperada. Ela não devia ir embora!

- Camz! - a chamei, nem conseguindo respirar e falando apenas por impulso - não vem comigo?

Ela devia vir comigo! Era por isso que estávamos ali!

- Minha aula é para lá - apontou para o lado.

Sim, mas não faz sentido!

- Por quê?

Não estava combinado que eu ficaria ali, desamparada, solta no desconhecido tão assustador. Segurei o choro, mas eu não sou a melhor pessoa em controlar algo.

- Eu faço medicina, lembra? - assenti - as aulas de medicina ficam naquele prédio.

- Impossível esquecer, a medicina me odeia o tempo todo - baixei a cabeça para que não me visse chorar e Camila foi embora.

Aquela Dakota a tirou de mim, e eu ficaria ali, abandonada, sem ninguém que conhecia para me abrigar em segurança.

Fui obrigada a caminhar. Isso porque era o meu momento, meu recomeço. Eu começaria a estudar artes. E se assim devia fazer, assim faria.

É infeliz, mas ninguém pode me barrar quando ninguém podia me barrar. Isso porque eu amo a arte e ela nunca me desampara.

É que, ainda usando palavras de Freud, a felicidade é um problema individual. Aqui, nenhum conselho é válido. Cada um deve procurar, por si, tornar-se feliz. E eu estava buscando ser feliz fazendo o que amo pela primeira vez na vida, se não contasse minhas longas horas desgastando minhas digitais em pesadas folhas de livros.

Eu seria mais tola que o normal se não tentasse.

Permiti que fosse engolida pela multidão na direção apontada por Camila e alcancei o espaço aberto de seu térreo. Havia muita conversa, mas meus ouvidos estavam protegidos os abafando. Avancei até que ela chegou, de repente parecendo que era tudo, todos, qualquer coisa.

A mulher era bonita, mas assustadora. Me perguntei o que estava fazendo ali com toda aquela gente que se aproximou dela e consequentemente de mim. E eu me preparei para tudo, menos para seus braços em torno de meus ombros.

Foi tudo muito rápido, mas não deixou de passar por minha mente. Então sim, Freud, se o pensamento é o ensaio para a ação, desamparadamente eu fugi assim que minha mente formulou que eu corresse o mais longe que minhas pernas conseguissem agir para me salvar das consequências de estar viva e em sociedade.

LIVRO 2 - intensamenteOnde histórias criam vida. Descubra agora