O retorno.

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Eu ainda estou de olhos fechados sob uma cachoeira de sangue negro quando minha mente conturbada une várias peças de um quebra cabeça delicado.
Ali em cada canto das memórias de Pamela pude sentir olhos verdes e pulsantes assistindo as mazelas que ela tão cruelmente foi forçada a viver.

Observo, ainda, que não fui trazida aqui por mero acaso. Adentrar na cidade de Três Pontas era parte de seus desígnios. Ele pretendia me confrontar com a verdade nua e crua sobre o homem pelo qual minha paixão caminhava, numa forma cruel de expor a realidade.

Marcelo planejou isso. Talvez não imaginava tal desfecho mas foi tudo calculado por ele.

No eco do sentimento que ele demonstra, noto a melodia sutil dos seus próprios anseios, traçando caminhos secretos para me manipular.

Entre meus dedos, os cabelos tingem-se com o sangue que ainda pinga lentamente. Jorge e o médico foram responsáveis pela minha ruína. Caminho pelas ruas da cidade.
Marcelo recolheu esses fragmentos, moldando-os à imagem do que ele desejava que eu me tornasse.
_Emerson!
Eu o encaro e o chamo com a mão.
O menino ainda em lágrimas corre em minha direção.
_Eles vão morrer?
Eu nego andando pelas ruas.
_De um tempo para que lambam suas feridas em paz.

Eu o oriento enquanto nos afastamos.
Passo a passo, percorro as ruas desoladas da cidade, onde o eco dos meus passos é a única trilha sonora. À distância, vislumbro uma loja de roupas, sua vidraça quebrada um testemunho silencioso do abandono. O cheiro de mofo impregna o ar, um lembrete gélido de tempos passados. No entanto, mesmo diante dessa cena desoladora, minha observação é fria, como se o choque ainda mantivesse uma fina camada entre mim e a realidade desmoronada à minha volta

Diante do espelho imponente, contemplo-me envolta por uma camisola de renda branca, agora marcada por estigmas de sangue. A sapatilha de tecido completa a imagem de desolação.

No reflexo manchado do espelho, indago a mim mesma: O que sou agora? O que me tornei?

Em um passado que exaltava minha liberdade e autonomia nas decisões, confronto-me com a desconcertante realidade. Como permiti que um amor, essa idealização romântica, diluísse a essência que, antes, era forjada por minhas próprias mãos?

A sensação de acordar numa carroça, levada a um destino delineado como uma mala, ressoa como um eco de escolhas que não foram inteiramente minhas.

Deixei que outros puxassem as rédeas do meu futuro, como se a minha liberdade fosse algo negociável. É uma autoavaliação dolorosa, uma percepção tardia de que permitir que terceiros guiem minha jornada pode resultar em um caminho desconhecido, como aconteceu com Pamela.

Sou grata a Marcelo mas nem ele pode me dizer o que fazer.

No íntimo das minhas reflexões, surge a certeza penetrante: mesmo que ele anseie pelo meu bem, essa benevolência não confere a ele o direito de decidir por mim. Cada escolha, cada passo, deve emergir do solo fértil da minha própria vontade. É uma jornada solitária, repleta de autodeterminação, onde reconheço que o desejo alheio pelo meu bem não pode sobrepor-se à soberania da minha liberdade.

Em um acesso de ira, liberto-me dessa roupa maldita e delicada e início uma busca frenética por qualquer fonte de água para me limpar.

Com sorte, nos confins da loja, encontro vestígios de água nos canos, escorrendo para uma modesta pia. É o suficiente para uma limpeza superficial, no entanto, a frieza persiste, como se cada gota que escorre fosse uma tentativa vã de apagar não apenas as manchas visíveis, mas as cicatrizes mais profundas esculpidas pela raiva e vulnerabilidade.

Visto calças e botas, minha perna ainda dolorida, mas resiliente o suficiente para sustentar meu peso. Uma jaqueta abandonada me envolve, e nas mãos, seguro firme meu facão. Devolvo Emerson ao pai, que permanece desacordado no canto da rua.

_Emerson, fique aqui. Se escurecer antes dele acordar, encontre um lugar e se esconda.

O menino me encara, olhos cheios de temor, enquanto me abaixo para ficar à sua altura. _Você é forte, é inteligente, e eu já verifiquei, a cidade está completamente vazia.

Ele concorda com obstinação.

_Seu pai vai acordar em breve.
Monto em Ugo, que se ajusta perfeitamente a mim.

_Para onde vai? -Emerson pergunta, buscando entender meu destino.

_Vou voltar para casa - o menino nega com a cabeça - para a minha casa.

A decisão, fria como aço, paira no ar, delineando a rota de uma jornada que agora assumo com determinação implacável.
_Eliza eles são muitos.
O menino me alerta.
E um sorriso dança em meus lábios.
_ Eu também sou muitos.

Refúgio BrutalOnde histórias criam vida. Descubra agora