Ratos

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Sob o sol matinal, meu quarto ganha vida. A porta trancada é minha barreira contra o mundo lá fora, eles pensam que de fato estou presa aqui. Desde a chegada de Jorge, esta casa se transformou, e agora, ao vestir minha calça jeans, sinto que pertenço a esse lugar diferente de antes quando eu dormia na senzala.

A dor persistente na perna é um lembrete constante da mudança. A camiseta preta envolve-me, e diante do espelho, ajeito meus cachos com a mistura de babosa e água, um ritual que se tornou meu amparo. Pronta para encarar o dia, este lugar é meu, e ninguém mais pode reivindicá-lo.

A maçaneta range ao abrir, e Teresa adentra o quarto. Seu olhar busca pela cama vazia, até descobrir-me diante do espelho do banheiro. Um leve choque percorre seu rosto, surpresa por não me encontrar apática, com medo ou apavorada. Consciente da minha boa aparência, encaro-a, e ela, furiosa, profere:
_Trouxe seu almoço.
A constatação compartilhada entre nós adiciona uma tensão palpável ao ar.

Antes, gostava sinceramente de Teresa, até descobrir sua lealdade inabalável a Jorge, ultrapassando qualquer escrúpulo. O futuro me parece incerto, e não sei como vou enxergar as pessoas quando esta saga chegar ao fim.

Meu reflexo no espelho revela cabelos longos e cacheados, pele cor de mel, olhos castanhos, lábios voluptuosos e um nariz redondo, testemunhas genéticas dos escravos que deixaram sua marca nesta região ao longo dos séculos. Esta não é a mesma Eliza do início, e sei que não serei a mesma quando essa narrativa chegar ao seu desfecho. Com essa certeza, encaro-me mais um pouco, buscando nas feições a promessa de que não me perderei.

Eu inspiro fundo e me aproximo da janela no segundo andar. Ao olhar para baixo, reconheço a possibilidade de escapar sozinha, algo que sempre esteve ao meu alcance. No entanto, uma estranha dependência emocional me prendia, alimentando a ilusão de que, de alguma forma, tudo se resolveria .

Num sussurro para mim mesma, lanço um desdém:
_Anta.

Num misto de perplexidade e resignação, deslizo para fora da janela, abandonando momentaneamente a segurança do segundo andar. O vento corta meu rosto enquanto a gravidade me arrasta em direção ao solo. A queda é rápida, e por um breve instante, a sensação de liberdade se mistura à vertigem.

Então, o impacto chega, e meu corpo colide com o chão. A dor surge instantaneamente, percorrendo cada fibra do meu ser. A realidade do solo firme abaixo de mim é como um choque de retorno, contrastando com a temporária suspensão que experimentei no ar. Meus sentidos, momentaneamente anestesiados, agora se acendem em resposta à rude reintegração ao mundo terreno. No chão, estou vulnerável, mas a escolha de cair é, de alguma forma, uma afirmação de controle em meio ao caos que me envolve.

Permito-me gemer por um segundo, abraçando minhas pernas enquanto a dor da queda se infiltra em cada parte do meu corpo.

_Você está bem?
A pergunta ressoa, e salto, procurando o inquisidor, mas não há ninguém ao meu redor. Não estou louca.
_Quem está aí?

Lentamente, como se fosse um vapor tomando forma, Red se manifesta à minha frente. Ele me encara com olhos curiosos, agora repletos de uma racionalidade que não possuía em nosso último encontro. Não é preciso perguntar para entender que ele se alimentou da carne de Marcelo em Três Pontas para sobreviver e, consequentemente, foi afetado pela cura do vírus, o bastante para poder falar comigo . O encontro revela uma transformação, não apenas física, mas também na essência de quem ele é agora.

Instintivamente, dou um passo para trás, ponderando se ele tem consciência de que minha carne é a fonte da cura. Contudo, controlo meu medo, evitando que ele perceba.

_Por que não me ajudou a descer?

_Por que não me pediu,- ele responde, como se fosse uma verdade evidente.

_Eu não sabia que estava aqui, -pauso, - o que faz aqui?

_O Senhor Marcelo pediu para que eu não te deixasse colocar sua fragilidade humana em risco.

_Idiota! - ralho. - Isso inclui não me deixar pular do segundo andar enquanto observava invisível!

_Bom saber, não sabia que sua parte humana era inútil a ponto de se ferir com uma queda tão insignificante- , ele comenta, provocando um revirar de olhos.
Constato que ele não evoluiu como Marcelo provavelmente por ter tido acesso a uma parcela já contaminada da cura.

_Você um dia já foi humano, sabia.
O lembro ao notar seu desdém pela espécie.

Ele nega.
_Improvável.
A resposta dele ecoa com uma certeza desconcertante, revelando as mudanças profundas que a transformação trouxe.
Ele não se lembra que é humano e se ele for colo Marcelo era antes ele despreza a vida humana com todo seu âmago.

_já que está aqui me siga no modo invisível e apareça se eu gritar.
Ele responde ficando imediatamente invisível.
Eu me esgueiro até o porão quero conversar com ele.
O homem que iniciou tudo isso.
Lentamente vou até a senzala.

Adentro o cômodo, um espaço que um dia foi a senzala e também onde eu dormia para me sentir segura, e deparo-me com a presença do homem ferido. Ele repousa, adormecido, mas as marcas cravadas em seu corpo contam a história de açoites e espancamentos, uma punição severa por seus atos condenáveis.

Apesar de sua condição crítica, nenhum resquício de piedade toca meu coração. As cicatrizes da justiça impiedosa desenhadas em sua pele são o resultado de escolhas questionáveis, escolhas que condenaram até mesmo a raça humana . Mesmo em seu sono profundo, a visão desse homem castigado não desperta compaixão em mim. O ambiente carrega a tensão da punição merecida, e encaro a cena com a certeza de que ele colheu o que semeou.

_Red.

-Huumm,-ele rosna atrás de mim.

_Cure ele o bastante para não morrer, - instruo, -ele pode sentir toda dor que você souber causar, mas não pode morrer.

A ordem é dada com uma frieza calculada, delineando a necessidade de manter esse homem vivo, sofrendo as consequências de suas próprias ações.

Querendo ou não, ele é o único que detém o conhecimento para reverter ao menos um fragmento deste mundo.

Passos nervosos chamam minha atenção. A cozinha, situada diretamente acima da minha cabeça, agita-se com uma ansiedade perceptível. É evidente que finalmente começou.

:::continua:::

Refúgio BrutalOnde histórias criam vida. Descubra agora