Red

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Coloco a cabeça para fora da carroça, que range ao se mover delicadamente. Cansada de permanecer sentada, decido andar, mesmo consciente de que receberei críticas por isso.

Calço minhas sapatilhas de pano.
Não faço ideia de onde Marcelo conseguiu essas roupas para mim, mas honestamente, elas não condizem com o cenário pós-apocalíptico que vivemos. Preciso de calças e sapatos fechados e resistentes.

Dou apenas dois passos antes que a carroça pare e a cabeça de Marcelo me procure. A conexão entre nós é instantânea, uma troca de olhares que ultrapassa as palavras e me faz reconsiderar minha decisão de caminhar.

Ele ergue uma sobrancelha para mim, por baixo de um chapéu que da sombra em seu rosto, evitando o sol que o torturou anteriormente.
_ onde estamos?
Pergunto me aproximando, meu objetivo é evitar que ele me coloque de volta.
_Bom tivemos que fazer um desvio na região de Oliveira então acredito estar em algum lugar entre campo Belo é boa esperança.

Olho em volta. A humanidade, finalmente, conquistou... ou foi conquistada. O silêncio chega a ser perturbador, sendo que o único som perceptível é o das árvores farfalhando e dos grilos cantando. A natureza domina quase tudo, e apenas prédios tomados pelo tempo e estradas quase completamente cobertas pelo mato são os vestígios do que restou. Este é o legado do mundo que um dia foi nosso.

_Gosto mais quando você usa o Eco, - ele diz ao meu lado, seus olhos fixos na estrada.

_Por que? - pergunto.

_Assim sei o que está pensando.

Minha perna dá uma fisgada, e qualquer pessoa reclamaria pela dor, mas eu estou grata por poder andar. Caminho um pouco mais rápido com o objetivo de chegar até Ugo. Na verdade, quero esconder a careta que estou prestes a fazer.

Aliso meu cavalo, feliz por ele estar aqui, um companheiro constante nesse novo mundo.

_ É muito mais vazio do que eu pensava, - comento, deixando escapar uma observação sobre a solidão que permeia o ambiente.

_Bem, a população meio que foi dividida em três. Os humanos mataram os Ecos, e os Morphileons só saem à noite, então...

Ele inclina a cabeça para o lado, e seus olhos negros são atravessados por um brilho verde, como um feixe de luz emergindo na escuridão.

_Sentiu isso?

ele pergunta com uma expressão séria, buscando qualquer sinal de percepção além da minha.

_Não, - respondo, observando cautelosamente o entorno.

_Pegue, - ele diz, me entregando as rédeas, e desaparece entre as folhas ao nosso redor. Seu desaparecimento, como uma sombra entre as sombras, deixa-me com uma sensação de inquietude enquanto aguardo sua volta.

Envolta pelo silêncio quase palpável, seguro as rédeas com uma determinação tranquila. Meu olhar se divide entre o caminho deserto à frente e Emerson, que, na carroça, dá vida a um mundo imaginário com seus dois bonecos.

A atmosfera é tensa, como se o próprio ambiente retivesse a respiração, antecipando os desdobramentos neste novo capítulo de um mundo que tenta se redefinir após o colapso da antiga ordem.

Sem aviso, os dois caem do céu como duas pedras, enrolados em uma luta feroz, onde dentes e garras se encontram em um confronto violento. Ugo empina e relincha, surpreendido pelo inesperado. A carroça, agitada pelo caos súbito, cospe Emerson para fora, enquanto meu cavalo, se ergue em meio à confusão.

Com dificuldade, seguro as rédeas, lutando para acalmar Ugo, cujos cascos dançam no ar em uma dança selvagem de nervosismo. O vento leva consigo os relinchos e grunhidos da luta entre as formas animalescas. Tento suavizar minha voz, sussurrando palavras tranquilizadoras enquanto a força do animal parece desafiar qualquer tentativa de controle.

O desafio é imenso, e cada tentativa de acalmar parece trazer uma resposta tumultuada. Seus coices fazem a carroça ceder, e percebo que ele quer se soltar.

Se eu não fizer algo, ficaremos a pé. Então, em um movimento arriscado, salto sobre ele da melhor maneira possível, puxando os arreios que o prendem à carroça.

_Calma! Calma!
o advirto, mas não adianta. O bicho está extremamente perturbado, e com um pulo, sou arremessada de cima dele, encontrando o asfalto. O impacto é brusco, e por um momento, tudo ao meu redor é um borrão de movimento e som, enquanto tento processar a reviravolta que acaba de ocorrer.

Em meu borrão, vejo meu belo animal disparado em direção ao nada. Sinto algo crescendo dentro de mim, uma mistura de desespero e tenacidade . Ainda escuto os dois Morphileons lutando pouco à frente presos em sua propio bestialidade.

_Parem!!!
Eu grito, usando o Eco. O som de minha ordem atravessa o ar com violência, cortando plantas, animais e até mesmo o próprio ar em uma onda de fúria. Minha voz, impulsionada pela energia que pulsa em mim, ecoa como um trovão, reverberando através da paisagem que se estende diante de mim.

Dentes congelados e golpes interrompidos no ar, ao som de minha voz.

Ainda estou caída no chão quando reconheço aquele Morphileon que eu vi na cidade aquela vez provavelmente nós seguiu até aqui, e como tanto eu como Marcelo estávamos fracos não notamos.

Ele está preso pela garganta dentro das garras de Marcelo, quando diz.

_Você falar Morphileon?
A mesma pergunta idiota que ele fez da última vez.
Eu ranjo os dentes e fico de joelhos, meu corpo está doendo muito.
_Eu falar Morphileon. E espero que entenda o que vou dizer. -Rosno através do Eco- vá buscar a porra do meu cavalo que você assustou seu - agora grito - idiotaaaaaa!!!!

O homem de olhos como brasas ergue-se e se afasta de Marcelo com um pulo entre as árvores, instantaneamente desaparece. Marcelo está parado, me olhando, a surpresa desenhada em sua face. O eco do confronto ainda ressoa no ar, enquanto a incerteza do que acabou de acontecer paira entre nós.

Embora eu pudesse até considerar me gabar pela maneira superior como lidei com a situação, somos interrompidos pelos choramingos de Emerson, que ecoam do mato para onde foi lançado. Nos apressamos em sua direção, a urgência em nossos passos substituindo qualquer traço de autorreflexão momentânea. O instinto paternal e a preocupação imediata dominam, relegando o orgulho momentâneo a segundo plano diante da necessidade iminente de cuidar do nosso filho.

~continua ~

Refúgio BrutalOnde histórias criam vida. Descubra agora