Grama vermelha

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Uma pessoa normal costuma ter memórias comuns em sua vida.
Cada memória é datada de uma forma diferente.
Uma pessoa como eu tem as memórias lacunas em branco.
Porém algumas memórias não podem ser esquecidas.
::: fronteira entre Brasil e México 5 anos atrás:::

Na vastidão impiedosa do deserto, ele emergiu das sombras como uma miragem distorcida. Sob o sol inclemente, seus olhos, antes humanos, agora refletiam a selvageria que se apoderava dele. O calor escaldante castigava a terra seca, enquanto cactos pontiagudos erguiam-se como guardiões silenciosos.

O processo de mutação desdobrava-se, uma dança desafiadora entre a humanidade residual e a besta interior. Sua fome insaciável ecoava nos confins da desolação. Cauteloso, resistia aos instintos animalescos que ameaçavam dominá-lo, mantendo-se nas sombras.

Ao longe, um grupo de humanos, exaustos e distorcidos pela miragem do calor, ousava desafiar a fronteira do Brasil e México. Ignorantes da presença que os espreitava, cada passo deles marcava a poeira levantada por pés fatigados, enquanto o vento quente sussurrava segredos no deserto.

Escondido entre as rochas, ele testemunhava a luta interna, enquanto os cactos pareciam testemunhas mudas do conflito. Na fronteira implacável, entre o Brasil e o México, a dualidade atingia seu ápice. A humanidade e a fera dançavam em uma coreografia de sombras e luz, enquanto o grupo humano, alheio à iminente ameaça, prosseguia em sua jornada desafiadora, traçando destinos incertos sob o sol impiedoso do deserto.

Arrastando-se pelo chão como um réptil, sua mutação o transformara em uma sombra sinuosa entre as rochas e areias escaldantes. Os olhos de fera varriam o terreno, enquanto ele se movia com a graça predatória de um lagarto na caça. A besta interior agora guiava seus passos, cada movimento carregado de uma selvageria contida.

Observando o grupo de humanos com olhos cruéis, ele discernia a hierarquia impiedosa que os governava. As crianças e mulheres, indefesas e incapazes de contribuir significativamente, eram relegadas aos estratos mais baixos dessa ordem frágil. Onde os homens ostentavam uma posição de destaque, as crianças e mulheres estavam subjugadas, seus papéis limitados pelos grilhões da tradição e circunstância.

Enquanto avançava, a consciência de sua própria metamorfose não lhe escapava. A besta interior, agora plenamente desperta, captava as nuances da sociedade humana com uma percepção aguçada. No deserto ardente, ele testemunhava não apenas a luta pela sobrevivência física, mas também a complexidade das relações e da injustiça que permeava a jornada do grupo humano.

E assim, ele continuava sua marcha reptiliana, uma testemunha oculta da dinâmica humana, enquanto a hierarquia cruel desdobrava-se diante de seus olhos selvagens.

Deslizando sorrateiramente sobre a terra escaldante, ele permanece ignorante das ligações ocultas que entrelaçam sua existência com a cena desdobrada à sua frente. Seus olhos de fera, cegos para os detalhes, observam o grupo humano como peças móveis em um tabuleiro de areia.

Desconhecendo que, entre as crianças e mulheres sujeitas à cruel hierarquia, estão sua própria criança e mulher. O destino traçando caminhos sombrios sem que ele perceba. No silêncio do deserto, eles se tornam vítimas silenciosas da violência que permeia o grupo humano que ele agora segue inadvertidamente.

A besta interior, cega para os laços sanguíneos que entrelaçam seu ser, não reconhece os entes queridos que se encontram nas garras da adversidade. Enquanto ele avança como parte inconsciente do bando, não percebe que, por trás das máscaras de desconhecidos, estão aqueles que lhe são mais preciosos.

De longe ele observou Valesca e Emerson durante toda a travessia da fronteira.
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Presente momento.
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Marcelo torceu o rosto, atingido por lembranças dolorosas. Empoleirado numa árvore, observava Jorge revirando a terra com resmungos insanos. Seus olhos estreitos não conseguiam perdoar o amigo a quem um dia dedicara tanto afeto. Pior ainda, confiara-lhe a família. Se soubesse, teria deixado ambos sozinhos em Nova York. A amargura da traição pairava no ar, enquanto Marcelo, entre as folhas, lamentava as escolhas que o ligaram a um passado agora repleto de ressentimento.

Refúgio BrutalOnde histórias criam vida. Descubra agora