Na manhã seguinte, Daniel entrou transtornado no escritório. Eram oito horas da manhã, eu ainda carregava o cansaço da noite insone perdida em confabulações sobre o passado e estava sem humor para os rompantes dele.
– Deixa eu adivinhar... você não ficou com o Pedro.
– Cala essa boca, Samuel! Você acha que pode me manipular? Você acha que eu sou igual a você, que passa por cima de tudo e todos sem ligar pras pegadas de merda que ficam pelo caminho? Eu não sou como você! Eu nunca vou ser!
– Ok. Um "não fiquei" teria sido suficiente.
Eu estava magoado e irritado, mas não podia culpa-lo. Ele estava certo em 100% das vezes em que me chamou de desgraçado insensível. Essa era a roupa que eu usava e que me servia melhor do que todas as outras. Era a vestimenta que ele nunca seria capaz de imitar, porque era bom demais para isso.
Olhei para ele com atenção. Notei que ele estava curvado sobre a mesa, as mãos na cabeça e a postura tensa de um jeito que há muito tempo eu não via. Não devia ser apenas por um desejo frustrado. Tinha algo mais ali.
– Não é só isso, certo? O que houve, Daniel?
– Eu não aguento mais isso, Sam. Não aguento mais!
– Fala comigo! O que aconteceu?
Ele suspirou e ficou um tempo olhando pela janela. Um tremor era perceptível em suas mãos, uma lágrima estava presa na curva do seu nariz. Eu queria fazer alguma coisa... eu seria capaz de fazer qualquer coisa para tirar meu irmão desse lugar.
– Eu só estou cansado, Sam. Não me leve a mal, acho que você tentou, de verdade, mas não vejo como resolver isso. Eu cheguei ao meu limite e não posso mais submeter você, a Daiane e a Lari a esse fiasco que se tornou a minha existência.
– Dani, do que você está falando? Para com isso, cara. Eu estou aqui, do teu lado! Nós te amamos!
– Eu sou uma mentira, Sam. Sou um engodo.
Cara, eu não conseguia entender. Se era tão difícil sustentar uma mentira, não seria mais fácil assumir a verdade com todas as dificuldades que poderiam surgir? Qual era o problema em ser gay, afinal?
– Você sabe que vivemos em outros tempos, certo? Uma conversa sincera pode trazer resultados surpreendentes, e se o problema for a rejeição, posso te garantir que você é totalmente capaz de sobreviver a isso. Sei do que estou falando.
– Não, você não sabe. O que você tem a perder? Você acha que eu não amo a minha esposa, que não ligo para a minha filha? Eu as amo! Mas aparentemente amá-las não é suficiente. Nunca será.
Eu tive vontade de chorar. Eu queria abrir o crânio dele e jogar lá dentro toda a confiança que ele nunca teve, o amor que ele sempre mereceu e apagar todas as marcas que o passado deixou ali. Eu queria, mas não podia.
– Dani... me escuta. Podemos resolver isso, ok? Podemos marcar uma conversa, chamamos a Daiane pra contar a verdade, eu estarei ao seu lado te apoiando. Eu sempre vou te apoiar...
– Eu não sou como você, Samuel. Quem me dera se eu fosse, mas eu nunca vou ser.
– Para de se comparar a mim! Para com isso! Você é muito melhor do que eu em praticamente tudo! Se quiser olhar para mim, me veja como seu irmão, seu amigo, me veja como alguém que sabe o que você sente, o que tem passado, não um modelo ou exemplo. Não posso ser isso, nunca pude!
– Não. Você não pode. E você não tem o direito de me emprestar sua vida, muito menos de tomar a minha vida para si. Eu preciso dar um basta, Sam. Eu já tomei minha decisão.
– Do que você está falando? – senti um arrepio na nuca.
Ele se ergueu com tanta fúria que a cadeira tombou para trás. Passou por mim, me deu um abraço rápido e me disse que me amava. Eu tentei segura-lo pelo braço, mas ele sempre foi mais forte do que eu.
– Você vai falar com a Daiane? Vai contar a ela? – perguntei, angustiado.
– Diga a ela e à Lari que eu as amo. Diga que elas sempre foram tudo para mim e... peça a elas que me perdoem.
Então saiu batendo a porta. Eu desci as escadas para tentar alcançá-lo, mas não cheguei a tempo. Ele saía pelo portão elétrico quando ergui o celular para falar com a Daiane.
– Você tem o celular do Daniel no rastreador do seu aparelho? – perguntei assim que ela atendeu. – Não, não posso explicar agora, mas veja se consegue descobrir para onde ele está indo. Se conseguir, me mande a localização. Nos falamos mais tarde.
Eu voltei ao escritório para pegar a chave do carro com um aperto no peito. Medo e desolação me cobriam quando saí do prédio para dirigir sem rumo na esperança de encontrar Daniel bem e saudável.
Uma hora mais tarde, depois de eu ter circulado por todo o bairro, recebi uma ligação da Daiane. Eu não conseguia entender o que ela dizia. Ela gritava e chorava, e a única coisa que ficou gravada na minha cabeça foi a frase: "eles estão todos mortos". Minha mente entrou em stand by, então coloquei o carro no curso para o endereço que ela me passara do hospital.
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Do lado de cá (romance gay)
Short StoryConto erótico - GAY 🌈 Esse é um POV de outro conto já publicado e finalizado: DO LADO DE LÁ. Se quiser conferir, dê uma olhada aqui: https://www.wattpad.com/story/361329559-do-lado-de-lá. Se quiser pode começar por ele, ainda que sua leitura não se...