7 - Metade

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Não havia luz dentro de casa. Todas as lâmpadas estavam apagadas. Eu cheguei a me lavar, mas o cheiro e o ranço de onde eu estivera não se descolava do meu corpo. Nem mesmo Thor se aproximou de mim dessa vez pois sabia que não havia o que fazer. Eu cheirava a medo, eu cheirava a morte.

Era a primeira noite que eu tentava dormir em casa depois de quase uma semana. Era a primeira vez que eu estava totalmente sozinho depois de ter ficado cinco dias dormindo na sala de espera do hospital. Nessa manhã, tudo aconteceu muito rápido. Recebi a notícia, tomei as providências, à tarde sepultei meu irmão e agora eu estava num local que eu desejava com todas as forças da minha existência que fosse o meu próprio túmulo.

Mas não era. 

Não havia mais ninguém. Não havia quem ouvisse meu lamento, secasse minhas lágrimas ou me dissesse que tudo ficaria bem. Não havia alguma outra metade de mim andando por aí, uma parte que respirasse metade do meu ar, pulsasse metade das batidas do meu coração, sentisse metade da minha alegria ou tristeza... não havia mais um pedaço de mim. Eu não era mais inteiro, eu nunca mais seria inteiro, porque aquele que começou a existir no mesmo instante que eu quando ainda éramos apenas uma única célula, não existia mais.

Os médicos tentaram. Eles tentaram nos dois primeiros dias, mas nos seguintes eles permitiram que os aparelhos permanecessem ligados apenas para que houvesse tempo de eu, a Daiane, a Lari e meu pai assimilarmos a realidade de que Daniel não iria mais acordar. Ele não iria mais abrir os olhos depois de ter desistido, depois de ter intentado contra si mesmo e, com isso, ter ceifado a vida de outras seis pessoas. 

Me aliviava o fato de que ele jamais conhecerá a dor que causou. Junto conosco, outras famílias choravam. Outras famílias jamais perdoarão o que ele fez, assim como Daiane nunca perdoará o que acredita ser minha culpa, algo que supostamente eu tenha feito contra o meu irmão a ponto de leva-lo a isso, então, quando tive que dizer adeus, tive que fazê-lo ao Daniel, à ela e à minha sobrinha amada. Não ao meu pai, porque eu já não era considerado seu filho há anos. 

Meu pai compareceu ao funeral. Ficaram todos de um lado do caixão, e eu fiquei do lado de cá. No meu lado não havia compreensão, afeto ou amor. Não. Do lado de cá sempre houve julgamento, ódio, rancor e culpa. Do lado de cá é onde eu deveria ficar, onde deveria enterrar minha cabeça e permitir que o mundo e a vida me fodessem a cada passo.

Quando o isolamento e a solidão se tornaram demais para suportar, me vi entrando no site pornô à procura de Josh. Talvez ele devesse ser uma péssima escolha para qualquer outro, mas para mim, ele era o único e, por que não dizer, último recurso. Ele seria uma fantasia bem-vinda, um alívio momentâneo para que eu não precipitasse ainda mais na escuridão e terminasse como meu irmão, à beira de um adeus, só que dessa vez, ninguém estaria lá para eu me despedir ou sequer para sentir a minha falta. 

Quando a imagem de Josh surgiu atrás da tela, meu peito doeu. Eu senti uma necessidade tão grande de tê-lo por perto, nem que fosse por alguns segundos para que pudesse tombar minha cabeça em seu peito e me deixar ser consolado, que quase sucumbi e transpareci meu tormento interior. Nada daquilo era possível, então me contive a tempo.

– O que posso fazer por você hoje, Paul? 

Ele me chamou pelo nome falso. Ele sabia meu nome, mas preferiu não usá-lo. Nos primeiros momentos de conversa ele agiu estranho, maldoso e sarcástico, e eu entendi que era o que eu merecia por ser quem eu era. Josh poderia fazer muito por mim hoje, mas aparentemente não queria fazer nada.

– O que está disposto a fazer por mim hoje, Josh? – perguntei. Não havia força na minha voz. Não havia vida, ânimo... não havia nada. Mas então Josh sorriu, e o seu sorriso arranhou meu peito. Eu senti o calor afundar no meu âmago e tive vontade de chorar. 

– O que você puder pagar, Paul...

Eu fiz a contribuição. Uma contribuição bem generosa. Pensei na merda que era a minha vida, tão vazia e ridícula que eu precisava pagar para ter um pouco de atenção. 

– Comece me chamando pelo meu nome. Tenho certeza de que se lembra. Não faz tanto tempo desde nosso último encontro online.

– Não me lembro, caro Paul. São muitos os que passam por aqui. Talvez eu precise ser lembrado...

Essa doeu. Eu estava sendo tratado da mesma maneira que tratava os outros... e merecia isso. Mas algo no Josh me incomodou. Havia alguma coisa ali. Ele não parecia só um interesseiro. Parecia magoado. Parecia pessoal. Coloquei mais dinheiro na sua conta e respondi.

– Samuel. Meu nome é Samuel, Josh. E esse é o meu nome verdadeiro. Tenho certeza de que "Josh" não é o seu. 

Eu queria significar alguma coisa. Eu queria ser alguém. Eu queria ser eu mesmo e que isso fosse algo bom ao menos para uma única pessoa, ainda que eu tivesse que pagar para sustentar a ilusão.

– Muito bem, Samuel. Esse aqui na sua frente é o Josh. É a versão de mim que você terá. Se por acaso um dia me encontrar na rua, provavelmente não serei Josh para você. 

Pensei na ironia do que ele disse. Eu realmente o tinha visto na rua. Será que ele chegou a me ver? Fiquei me perguntando isso e por pouco eu não encerrei a chamada, mas sua postura beligerante foi o combustível que eu precisava para me sentir infimamente vivo. Se pudesse me segurar a isso, bastaria por um pouco de tempo.

— Ok, Josh... que seja então. Não que eu espere qualquer coisa além, vindo de você. Talvez você precise se esforçar um pouco mais para me surpreender, afinal.

Eu o alfinetei e foi notório como isso o balançou. Dentro de mim brotou um prazer perverso ao constatar que eu o afetava assim como ele me afetava, e isso causou um rebuliço no meu interior.

— Agora que nos conhecemos melhor, o que mais você quer de mim? – ele soou bem menos altivo dessa vez.

— Quero algo diferente hoje, Josh. Quero conversar.

Do lado de cá (romance gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora