Diego se vestiu e se sentou ao meu lado. Ele demorou um pouco para se pronunciar, mas quando o fez, me pareceu tão gentil que uma janela se abriu e um fiapo de luz entrou.
– Não... não sei nem o que é ter um irmão, quanto mais um gêmeo.
Enxuguei meu rosto e comecei a falar. Na medida que as palavras saíam, a sensação era como se eu estivesse expelindo pedras dos rins, só que através de um buraco no peito.
– Você começa sua vida colado a alguém, e tem cada instante da sua existência acompanhado por uma sombra ou uma luz que te ofusca dependendo da situação. Você nunca está sozinho mesmo que queira. Você sente o que a outra pessoa sente e ela sente o mesmo que você, e quando ela se vai...
Tive que fazer uma pausa. Doía demais falar sobre isso e pensei em recuar e deixar pra lá, mas então Diego se ajoelhou na minha frente e segurou minha mão. Nesse momento, olhei para ele e me senti seguro depois de muito tempo.
– Você não precisa estar sozinho se não quiser. – ele começou a falar enquanto acariciava meus dedos – você é um cara tão... foda. Tão bonito e... não é tão difícil encontrar alguém para estar ao seu lado. Um amigo, ou algo mais.
– Você seria uma opção? – perguntei com a esperança de uma criança que espera o Papai Noel. Se ele me quisesse, talvez eu pudesse ser um pouco mais do que um pedaço malformado de homem.
– Não sei se sou uma boa opção, Samuel.
Era óbvio que não. Papai Noel não existe, caralho! Desanimado, me vi confidenciando:
– Eu conheci você por causa dele.
– Como? – ele pareceu aturdido. Como não estaria?
– Daniel. Esse é o nome do meu irmão gêmeo. Foi ele quem me apresentou o site. Foi ele quem me mostrou o seu perfil e me disse que estava fascinado por você. Eu sequer tinha o hábito de consumir esse tipo de coisa até me deparar com o seu vídeo.
Quase dava para ver as engrenagens se encaixando na cabeça dele. Eu sabia que já deveria ter esclarecido essa confusão, mas aparentemente, covardia era mais uma faceta do meu caráter de merda.
– Então, o primeiro que entrou no meu canal... não foi você?
– Não.
Esperei ele absorver a notícia, então comecei a vomitar as palavras. Não havia mais como mantê-las dentro de mim. O veneno da realidade que elas carregavam estava me matando, e se houvesse uma chance, qualquer chance de encontrar algum alívio, eu aproveitaria a oportunidade.
– Ele nunca se assumiu. Diferente de mim que sempre soube o que eu queria e o que sentia, ele sempre negou. Eu me assumi gay aos 14 anos, e foi fácil entender que, apesar de nunca me sentir atraído por mulheres, nunca deixei de ser homem por isso. Nunca fiquei confuso sobre minha masculinidade, não desejei ser mulher ou agir como tal, pois amava meu corpo, amava minha força, amava tudo em mim, e amava isso no outro. Isso chamou minha atenção para você, porque você é todo homem, todo força, não tem nada suave ou delicado em você e eu... bom, fez o meu tipo, mas não quero falar de mim.
Esperei para ver se ele diria alguma coisa. Ele não se pronunciou, então eu continuei.
– Ele era casado, pai de uma garotinha. A esposa dele, Daiane, é uma loira fenomenal, digna de capa de revista. Ele sempre fez essas escolhas extravagantes para tudo, como se quisesse provar pro mundo que estava no controle dos próprios impulsos. Existe uma história ruim por trás das atitudes dele, de quando ainda éramos adolescentes, mas isso te conto outra hora. O caso é que ele queria ser livre como eu e a prova disso é que ele me espelhava em tudo. Se eu deixava a barba, ele deixava também. Se eu cortava o cabelo, ele também cortava. Ele gostava do mesmo tipo de roupa, era como o meu reflexo, e era muito comum mesmo as pessoas que nos conheciam nos confundir, porque ainda que ele fosse apenas um pouquinho mais forte do que eu, de fato éramos idênticos, por mais que eu buscasse ser diferente dele. Uma ou outra vez trocamos os papéis e eu deixei ele ficar com algum cara que eu tava pegando só pra ele se aliviar. Sei que parece horrível, mas não espero que você entenda.
Vi a desaprovação velada por trás do olhar. Não podia culpá-lo e até o admirava por reconhecer que eu era um monstro.
– Ele também trabalhava por perto?
Ele jogou a pergunta e eu sabia que era porque já tinha entendido a confusão que a nossa semelhança causou.
– Ele trabalhava comigo. Tenho um estúdio fotográfico e ele era fotógrafo. Eu também sou, mas cuido muito mais da gestão e do casting.
– Então... dias atrás, quando pensei ter te encontrado na padaria...
– Não era eu.
– Você poderia ter elucidado o caso. Eu não tinha como saber. – ele comentou aparentemente contrariado. Contei a ele sobre o último dia do meu irmão e a forma como ele chegou transtornado após o suposto encontro deles. Deu para ver o pânico passando por seu rosto. – Acha que eu tive alguma culpa no que aconteceu com ele...?
– Não. Claro que não. O problema era antigo e totalmente diferente. O problema foi comigo. Sempre fui eu. Quando você o abordou, ele entendeu que eu entrei no seu perfil e concluiu que, como sempre, eu fiz tudo o que tive vontade de fazer, diferente dele...
Diego me olhava assustado enquanto eu destilava meu próprio veneno e o engolia de volta. Tive quase certeza de que quando terminasse de falar, ele me mandaria embora, mas isso não me impediu de terminar.
– Ele disse que tinha chegado num limite e eu pensei que ele falava só sobre a própria sexualidade, então o incentivei a dar um basta e se assumir, a assumir o que amava, que isso não era vergonha para ninguém. Falei para ele que já que sempre olhava para mim, que enxergasse em mim não um modelo, mas um apoio, alguém que sempre entenderia e aceitaria quem ele era e como ele se sentia. Não foi suficiente...
– O que aconteceu depois? – ele perguntou. Não havia condenação na sua voz. Respirei fundo e respondi.
– Ele saiu do escritório, entrou no carro, pegou uma rodovia na contra-mão a mais de cem por hora e... colidiu de frente com uma van. A van foi arrastada para a encosta da pista e capotou. Ela transportava um grupo de estudantes, cinco adolescentes. Todos morreram na hora, menos o Daniel.
Diego ficou lívido e soltou minhas mãos num tranco. De repente, ele irrompeu porta a fora do próprio apartamento e me deixou ali, completamente aturdido. Eu não entendi nada, não soube se era pela história que por si só já era extremamente pesada, se era porque constatou que eu realmente era um lixo de pessoa, ou se havia algo mais ali que eu ainda não conhecia.
Me ergui para voltar para casa, mas me lembrei do vazio e da solidão. Não estava pronto ainda para encarar meus demônios. Eu também queria saber se Diego estava bem e qual o motivo do rompante. Me lembrei que Thor tinha água e ração suficientes para uma noite e resolvi aguardar.
Meu peito estava mais leve depois de ter falado tudo o que falei, então me vi guardando os livros que estavam espalhados no chão e dei um giro pelo apartamento modesto de Diego. Era pequeno, simples e... vazio. Não havia nenhuma decoração, nada de fotografias ou qualquer item que revelasse sua personalidade ou suas raízes.
Talvez eu não fosse o único com um buraco a ser preenchido. Talvez se eu tivesse a oportunidade, entenderia que o silêncio e as esquivas de Diego significavam muito mais do que apenas o desejo de não se envolver.
Com esse pensamento, me deitei no chão e esperei. O desafio me animou e me acalmou e, antes que pudesse registrar meu cansaço, adormeci.
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Do lado de cá (romance gay)
Short StoryConto erótico - GAY 🌈 Esse é um POV de outro conto já publicado e finalizado: DO LADO DE LÁ. Se quiser conferir, dê uma olhada aqui: https://www.wattpad.com/story/361329559-do-lado-de-lá. Se quiser pode começar por ele, ainda que sua leitura não se...