24 - Capaz de amar

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Fiquei sem ação. A garra opressora voltou a me apertar, e voltou com tudo a ponto de fincar na pele e fazer o sangue voltar a verter. Por algumas horas eu até havia conseguido deixar de lado o suicídio do meu irmão. Não estava pronto para trazer o assunto de volta tão depressa.

– Você pode ir embora agora. – ele resmungou, e eu imaginei qual seria o problema desse cara!

– Nem fodendo, Diego. Conversa comigo.

Eu fiquei nervoso com ele. Me dei conta do quão pouco eu sabia a respeito dele. Sempre enxerguei algo profundo e sombrio sob a superfície charmosa e fodidamente sexy, mas não esperava uma história aparentemente mais macabra do que a minha.

– Não tem o que conversar. É passado, não preciso falar disso.

– É claro que precisa. Olha como isso ainda te afeta! – respondi, indignado.

– É só por causa da história do seu irmão. Ouvir me fez lembrar, daí eu surtei no meio do sono. Logo eu esqueço e tudo passa.

– Não tem como esquecer essas coisas, Diego.

Vi quando ele se curvou e enfiou os dedos nos cabelos. Eu definitivamente amava o cabelo dele. Descobri que não amava apenas o cabelo, e essa porta para o passado que ele escancarava diante de mim era a última catraca que faltava para que eu encontrasse nele as semelhanças que nos conectavam. Percebi nesse instante que a dor que inconscientemente nos ligava era a etapa final para que eu assumisse de vez que amava esse homem.

Eu amava o Diego.

Isso me pareceu tão improvável dada a complexidade da nossa história, que eu demorei a perceber. Levei em conta também meu nível de descontrole emocional pela tragédia que vivenciara, mas eu não era uma criança. Eu era adulto e sabia que o que sentia era real. Estava lá. Agora eu sabia e podia admitir para mim mesmo, e isso não me constrangeu nem me abalou como eu imaginei que aconteceria. Eu descobri que era capaz de amar e isso jogava por terra tudo o que eu pensava acerca de mim mesmo.

– Eu não consigo... – ele murmurou depois de prender o cabelo. Eu queria que ele deixasse solto. Eu queria enfiar meus dedos pelas madeixas para ajeita-los, depois eu queria colar meus lábios nos dele e dizer como me sentia. Eu queria isso, mas não podia cruzar a linha. Diego estava transtornado e profundamente triste, e eu conhecia esse lugar. Ele precisava deixar sair e tinha que fazer isso sozinho, caso contrário, como homem ele se sentiria humilhado e envergonhado.

– Como aconteceu? – perguntei e segurei sua mão.

– Minha mãe era depressiva...

Ele fez uma pausa e eu apertei de leve seus dedos para transmitir confiança, então ele voltou a falar.

– Desde que meu pai faleceu, ela ficou assim. Ele era bombeiro, morreu numa ocorrência, um acidente de trânsito envolvendo um caminhão pipa que transportava combustível. O caminhão explodiu enquanto tentavam evacuar a pista. Eu tinha dois anos de idade na época.

– Quantos anos ela tinha?

– 26 anos. Depois do ocorrido, sempre fomos só eu e ela. Não havia parentes, e depois de um tempo, nem amigos. Ela foi afastando todo mundo então não havia o que fazer. Eu cresci muito isolado e convivi com os picos de tristeza dela, quando ela ficava semanas deitada sem reagir. Aprendi a me virar muito novo porque os episódios eram cada vez mais frequentes e longos. Eu queria fazer alguma coisa, eu amava minha mãe acima de tudo, ela era a única pessoa que eu tinha.

Levantei sua mão e depositei um beijo em sua palma. O seu relato foi entrando em mim e despertando sentimentos velhos e conhecidos, como a depressão do meu irmão e a rejeição do meu pai. Eu queria tanto dizer a ele... Queria tanto falar que ela não era a única pessoa que ele tinha, que agora tinha a mim e que eu não pretendia ir embora, mas me contive e ele continuou a história.

– Talvez por isso sempre fui muito fechado. Eu sempre entendi que era demais para ela ter que cuidar de mim sozinha. Ninguém merece ficar sozinho com um bebê pra criar. Mesmo eu fazendo de tudo para não piorar a vida dela... ela não melhorava.

– Você era um bebê, Diego. Depois uma criança. Sabe que não tinha como facilitar as coisas, certo? Você nem deveria pensar nessas coisas.

– Mas eu pensava. Eu a ouvia chorar e reclamar o tempo todo. Ouvia ela perguntar pro universo, pra Deus ou sei lá pra quem, o que ia fazer comigo e por que ela tinha que passar por aquilo. Ela não me queria. Ela nunca quis.

– Isso não pode ser verdade... – essa parte da história me destroçou. Não podia mensurar o quanto ele sofreu a vida toda por se sentir rejeitado tão precocemente.

– Samuel... essa é a minha história, ok? Você pode ouvi-la, não pode mudá-la.

Ele estava certo. Quisera ter esse poder. Talvez eu tivesse mudado a história do meu irmão. Talvez tivesse mudado a minha própria. Ele suspirou e percebi que estava prestes a chegar na pior parte. Aguardei, apreensivo.

– Bom, o que aconteceu é que eu cresci assim, um mal necessário ou um bem indesejado, algo entre um e outro. Ela foi piorando, não buscou ajuda, não se abriu para ninguém e o resultado foi que, quando eu estava com 13 anos, ela pegou o carro velho que tínhamos desde quando meu pai era vivo, e acessou a mesma rodovia onde ele morrera no acidente. Ela fez questão de me colocar no banco do passageiro. Disse que não podia me deixar para trás, que tinha que fazer isso, que íamos finalmente ficar todos juntos novamente. Quando percebi o modo como ela acelerava, entendi o que ela pretendia. Entrei em pânico e pulei pro banco de traz do carro, sem deixar de implorar para ela parar. Nunca pedi para descer do carro, eu nunca a abandonaria. Ela não me ouviu e afundou o pé no acelerador até o chão. Nunca vou me esquecer da chuva, do barulho, de...– ele fez uma pausa e engoliu em seco – Chovia muito, e pela velocidade que ela estava, terminou por perder o controle. O carro rodou da pista e capotou, não sem antes atingir uma van, um transporte escolar, e tirá-lo da estrada. Diferente da história do seu irmão, não havia crianças a bordo, só o motorista morreu. Entende a semelhança? Entende por que eu fiquei abalado com a história do seu irmão?

Eu congelei. Notei que meus dedos que seguravam sua mão estavam tensos e apertavam um pouco mais do que o necessário. Não era possível que essa história fosse tão similar ao que ocorreu com meu irmão. Era chocante e aterrador perceber que Diego viveu o enredo do meu pior pesadelo, ainda tão jovem e indefeso.

Uma lágrima escapou e rolou pela minha face. Eu não queria que ele pensasse que eu tinha pena ou qualquer merda parecida com isso. Eu apenas não consegui segurar essa porque estava até o talo de dor estocada e precisava aliviar a pressão. Tentando desviar a atenção de mim, perguntei:

– Sua mãe...?

– Morreu na hora. Eu fiquei preso entre os bancos. O fato do carro ser antigo ajudou a absorver o impacto. Não ajudou minha mãe, que ficou esmagada no banco da frente. Eu tive mais sorte, só quebrei as duas pernas, um braço, costelas e tive apenas algumas escoriações leves porque o estofado dos bancos me protegeu das ferragens. Não sei se dá pra chamar três cirurgias e quase um ano de fisioterapia de sorte. Não carrego muitas marcas. Ao menos não no corpo. Se estar vivo é ter sorte, bom, que seja.

Eu olhei para as cicatrizes em suas pernas, ocultas sob uma camada de pelos dourados e reluzentes. A dor disfarçada pela beleza. Engoli o bolo em minha garganta e me concentrei em passar a imagem firme que ele precisava.

– Sinto muito, Diego. O que aconteceu com você depois?

– Eu ia entrar no sistema. Ia ser colocado para adoção. Como meu pai era militar, conseguiram me enfiar numa família provisória que acabou virando permanente. Vivi com eles até os 18 anos, então vim pra capital estudar e é isso. Fim da história.

Sem mais protelar, eu o abracei. Vi que ele se segurou em mim, mas não deu vazão à dor. Nesse momento, concluí que Diego era um dos homens mais fortes que conheci. Ele tinha um passado, uma história, sua vida toda parecia ter sido forjada com ferramentas pontiagudas. Eu sabia reconhecer a rejeição, convivi com ela minha vida toda, e pude ver essa mesma dor refletida nele.

Faltavam peças. Havia mais na história dele que eu precisava descobrir, mas isso sequer arranhava o que eu sentia enquanto o tinha em meus braços. Eu tinha que ir embora, mas eu ia voltar, ele querendo ou não.

Do lado de cá (romance gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora