Um raro evento estava acontecendo naquele plantão: quase ninguém tinha aparecido no pronto socorro. Eu sabia que isso era um suspiro antes de um mergulho em águas geladas, pois o dia seguinte era um sábado antes do carnaval e o pronto socorro do Hospital São Francisco ficaria lotado dali para frente.
Alguns enfermeiros estavam na copa, entediados e sem nada para fazer. Eu era um deles. Enquanto eu bebia café, encostado na parede em silêncio, tudo o que eu pensava era naquele fenômeno estranho que me rondava. Estava ansioso para Isabelle dar alguma notícia. Inevitavelmente, pensei no Wolfgang. Eu adquiri o costume de passar no bar do Silva após os plantões. Nós dois conversávamos bastante nessas ocasiões. Ele era uma pessoa singular, dessas que não se encontra em qualquer esquina. Nós desenvolvemos uma grande amizade. Há tempos eu não tinha um amigo.
Um murmurinho me tirou dos meus pensamentos. Vi Alessandra e Eliza cochichando, rindo e me olhando. Involuntariamente, encarei as duas.
— Mikael! — Alessandra chamou, enquanto Eliza a olhava com o cenho franzido.
— Quieta, Alessandra. — Ouvi a bela enfermeira sussurrar.
— Você tem namorada? — Alessandra indagou sem rodeios. Eu sabia que aquela pergunta era uma tentativa de mediar algo entre a Eliza e eu.
— Não. — Respondi.
— Ah, é? — Ela riu. Eliza cobriu o rosto com as mãos. — Namorar é tão bom e não é difícil pra você conseguir uma namorada. Por que tá solteiro?
— Para, Alessandra. — Eliza sussurrou.
— Não quero namorar… — Respondi um pouco desconcertado. — Ando meio ocupado com outras coisas…
— E o que isso tem a ver? — A enfermeira que falava comigo riu. Eliza olhou para baixo com uma expressão triste. Sentia-me mal por não conseguir corresponder uma moça tão doce e gentil como ela.
— Não vou conseguir oferecer a atenção que a pessoa merece. — Justifiquei-me. Alessandra assentiu e olhou de relance para Eliza. Desejei fugir daquela conversa desagradável e decidi deixar a copa. Fui até a pia, despejei o restante de café lá dentro, lavei o copo e saí do cômodo.
Aquela situação me deixou desconfortável. Eu não queria magoar a Eliza. O que tinha de errado comigo? Por que motivo eu não me interessava por uma mulher bonita, gentil e esforçada como ela? Abruptamente, desejei conversar sobre aquilo com o Wolfgang. Minhas mãos começaram a suar e percebi uma inquietação no meu peito, embora eu não soubesse a razão daquelas sensações.
—O fim do plantão foi um grande alívio. Peguei o ônibus e, durante todo o trajeto, contemplei o céu do fim do verão. Ele estava coberto de nuvens cinzentas e uma chuva fina e gelada molhava as ruas e o vidro do veículo.
Quando desci na estação do quarteirão em que eu morava, percebi-me caminhando até o bar do Silva. Foi uma atitude praticamente automática.
Entrei naquele bar de paredes verdes e mofadas e me deparei com o Wolfgang logo na porta. Ele estava servindo café para dois fregueses.
Wolfgang me fitou com seus olhos escuros e com olheiras. Seu cabelo cor de carvão estava bagunçado, como sempre, e alguns fios estavam caídos sobre o seu rosto. Notei que os hematomas em sua face estavam mais claros, em alguns tons amarelados. Os pontos já haviam sido retirados de sua sobrancelha e tinham deixado uma discreta cicatriz.
— Oi. — Ele me cumprimentou enquanto rabiscava a comarca dos fregueses e entregava para eles.
— Oi. — Eu sorri e ele retribuiu, um pouco sem jeito. Rapidamente, suas mãos magras jogaram o cabelo que lhe caía a face para trás, bagunçando ainda mais aquela cabeleireira escura.
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Filhos da Entropia
Mystery / ThrillerNo ano 1973, vivendo na época da Ditadura Militar, Wolfgang era um jovem brasileiro pobre, gay, filho de um imigrante austríaco, órfã de mãe e sem quase nenhuma perspectiva de vida. Trabalhando em um bar péssimo, ele vai vivendo os dias entre incont...